Estudo da USP Ribeirão aponta que disfunção nos testículos explicaria covid mais grave no sexo masculino

Foto: Jornal da USP

Fato que intriga os cientistas desde o início da pandemia de covid-19, a maior suscetibilidade de pessoas do sexo masculino à covid grave começa a ser desvendada. Estudo recém-publicado revela um conjunto de potenciais fatores, além de níveis divergentes de testosterona e de outro hormônio sexual, a dihidrotestosterona (DHT), e aponta para uma possível disfunção testicular causada pelo vírus.

Segundo Cristina Ribeiro de Barros Cardoso, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP e uma das responsáveis pela pesquisa, a equipe desvendou os mecanismos imunoendócrinos utilizados pelo sars-cov-2 que tornam a doença mais letal a esse grupo.

Em preprint divulgado no início do ano passado, o grupo já havia demonstrado níveis desiguais de testosterona e DHT entre os infectados do sexo masculino, o que chamou a atenção porque, em uma situação normal, esses hormônios andam em paralelo. Mas o que foi observado nesses casos foi uma queda significativa da testosterona enquanto a DHT aumentava. E mais, verificou-se ainda uma maior atividade dos receptores de andrógenos (molécula presente em diversas células do corpo humano que permite a ação dos hormônios).

Ao explicar as ocorrências, Cristina Cardoso conta que a “queda gritante” de testosterona e o aumento de DHT estavam relacionados ao agravamento do quadro de covid e só eram observados no sexo masculino. Pessoas do sexo feminino, naturalmente, produzem bem pouca testosterona.

Mas e a DHT, inversamente, em níveis tão altos? A professora esclarece que DHT é um “metabólito da testosterona, ou seja, o corpo produz testosterona e aí, por um processo enzimático, essa testosterona é convertida em dihidrotestosterona”. Essa transformação acontece principalmente fora dos testículos (onde é produzida a testosterona), em diferentes locais do corpo, como a pele, por exemplo. Ambos os hormônios têm efeito masculinizante, porém a DHT é muito mais potente que a testosterona ao se ligar ao seu receptor-alvo nas células.

Para agirem no organismo, os hormônios masculinos se conectam a receptores de andrógenos, moléculas que se encontram em várias células do corpo. Após esse “encaixe” do hormônio, é gerada uma sinalização para o núcleo, para o DNA da célula, permitindo a função natural no organismo. O problema, segundo a professora, é que, ao ser ativado pelos hormônios, esse receptor de andrógeno ativa o DNA da célula e, além de induzir à produção de DHT, “curiosamente, faz com que essa célula produza mais receptores e moléculas relacionadas à entrada do vírus da covid nas células”.

Os genes do DNA ativados por esse sistema são o TMPRSS2 e o SRD5A1, “cujos produtos proporcionam a entrada do vírus e a produção de dihidrotestosterona, respectivamente”, diz a pesquisadora. Assim, quanto mais hormônio masculinizante (no caso, a DHT) circulante no organismo infectado, maior é a sinalização do receptor de andrógenos nos glóbulos brancos (células de defesa do organismo).

Surpreendentemente, explica Cristina Cardoso, esse sistema imunológico ativado pelos hormônios masculinos está ligado também aos genes que ajudam o vírus a invadir a célula e convertem a testosterona em DHT, agravando a doença e aumentando o risco de morte.

Alta carga viral e baixa produção de testosterona

Os resultados da pesquisa indicaram que o déficit de testosterona não está relacionado com um problema no sistema nervoso central (hipotálamo e glândula hipófise), que regula a produção deste hormônio. Mostraram também que não se trata de disfunção hepática, já que estavam normais os níveis da Globulina Ligadora de Hormônios Sexuais (SHBG, sigla em inglês da proteína produzida pelo fígado e responsável pelo transporte dos hormônios sexuais na corrente sanguínea). Foi possível ainda verificar o aumento da expressão da enzima que converte a testosterona em DHT, informação comprovada por exames com os glóbulos brancos dos doentes.

Então, como explicar os níveis insuficientes de testosterona? Cristina Cardoso acredita que o vírus da covid causa disfunção testicular nos homens. Como os pesquisadores não investigaram diretamente os testículos com biópsias para verificar alterações em espermatozoides ou nas células que produzem testosterona, ela diz que ainda não é possível afirmar com certeza, mas tudo indica que o problema esteja nos testículos.

Outro achado do estudo foi a quantidade de vírus no aspirado traqueal (secreções dos pulmões) dos pacientes do sexo masculino entubados e em estado grave. Esta era muito mais alta que a das pacientes do sexo feminino nas mesmas condições.

“Mesmo que as mulheres estejam em estado grave, nas mesmas condições clínicas dos homens, quando se avalia mais de perto, os homens têm uma carga viral muito mais alta no trato respiratório”, diz ela.

Simples exames podem prever evolução da doença

O conjunto de informações reveladas pela pesquisa ajuda a orientar a equipe médica, que pode antecipar a evolução da doença de um quadro leve e moderado para grave. “Antes mesmo desses homens piorarem, conseguimos prever o que pode acontecer por meio de alguns exames laboratoriais”, afirma a pesquisadora. São exames simples, feitos como rotina em laboratórios de análises clínicas, que, combinados com idade do paciente e gravidade da doença (no momento da coleta do sangue), indicam quem deve evoluir pior.

Ela acredita que os resultados do estudo devem ser considerados tanto para a gestão específica do tratamento como para o controle da pandemia de covid-19, já que as “taxas de vacinação estão baixíssimas, a imunidade cai depois de um tempo, a eficiência vacinal (por conta da própria idade) não é das melhores e podem surgir novas mutações do vírus”.

Risco de covid grave é 50% maior no sexo masculino

Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), entre janeiro de 2020 e janeiro de 2021, 50% mais homens foram hospitalizados em comparação com as mulheres, o que mostra o sexo masculino em maior risco de covid grave desde o início da pandemia. O fato justificou os esforços do grupo de pesquisadores do Consórcio ImmunoCOVID, do qual faz parte a professora Cristina Cardoso e outros cientistas da USP em Ribeirão Preto e da UFSCar, além de médicos do Hospital Santa Casa e do Hospital São Paulo de Ribeirão Preto e estudantes de graduação, pós-graduação, pós-doutorandos e residentes.

O estudo foi realizado em 198 pessoas, de ambos os sexos, infectadas com o vírus da covid-19 e apresentando de quadros leves a graves, todos moradores de Ribeirão Preto (SP), entre abril de 2020 e janeiro de 2021 – portanto, antes do início da vacinação. As informações clínicas e diagnósticas das pessoas infectadas foram comparadas às de 92 indivíduos saudáveis.

**Texto de Jornal da USP

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