O espaço pode ser a fronteira final, como antecipa o cinema. Mas, para chegar a outros planetas, o homem ainda precisa viajar mais ao microcosmo celular. A afirmação tem base em um estudo que ganhou a capa da edição de novembro da revista Cell e encontrou, na disfunção mitocondrial, resposta para muitos dos principais problemas de saúde apresentados por astronautas que passam longos períodos fora da Terra. E um ex-aluno da USP de Ribeirão Preto e o grupo de pesquisa ao qual pertence foram fundamentais para essa descoberta.
A falta da proteção atmosférica e do campo magnético terrestre expõe o homem à microgravidade e à radiação espacial, que podem explicar a perda de massa óssea e muscular e as disfunções imunológica, cardíaca e hepática sofridas pelos astronautas. Em busca de informações que minimizem os impactos à saúde e viabilizem a exploração espacial, uma equipe de cientistas analisou dados coletados em diferentes viagens do programa espacial norte-americano e, como surpresa, descobriram uma causa comum a desencadear os danos de saúde: um defeito na mitocôndria, estrutura responsável pela respiração e produção de energia da célula.
Na abordagem sistêmica, os detalhes só fazem sentido em contexto mais amplo. Ao final das análises, segundo Silveira, ficou claro que uma disfunção mitocondrial era a causa dos problemas, como também que “alguns dos efeitos observados” intensificaram a disfunção mitocondrial; isso, sem contar que a “radiação espacial e a microgravidade, por si, podem ser causa de alteração na mitocôndria”, arremata o pesquisador, creditando aos anos de trabalho colaborativo do time o sucesso do projeto desenvolvido nos laboratórios da Nasa.
Essa informação é importante, assegura o pesquisador brasileiro, pois é vital encontrar solução para os danos à saúde se o homem pretende ficar longo tempo no espaço. E alguns desses danos são observados quase que imediatamente, como a mudança de fluidos para a parte de cima do corpo, causando desorientação e rosto inchado, além de dificuldade para dormir. Uma missão à Estação Espacial Internacional dura em média seis meses e alguns astronautas já passaram mais de 300 dias consecutivos fora da Terra. Mas uma viagem de ida e volta a Marte levaria quase dois anos.
Com os resultados deste estudo, Silveira acredita que tenham dado um passo importante para tornar viáveis viagens espaciais de longa duração e, ainda, que seja possível o desenvolvimento de novas terapias para doenças aqui na Terra mesmo. Explica que a disfunção mitocondrial é uma das características do envelhecimento e de várias doenças desencadeadas pelo passar do tempo de vida.
A má notícia, nesse caso, é que a medicina ainda ensaia os primeiros passos no tratamento das doenças mitocondriais. Mas Silveira acredita que o interesse cresça após a descoberta que fizeram. Por enquanto, as apostas do brasileiro estão nos estudos com a coenzima Q10, “um protetor contra radicais livres e o estresse oxidativo” indicado para todos os tipos de doenças mitocondriais primárias. Silveira adianta que, neste momento, está em curso, na Estação Espacial Internacional, uma pesquisa com um colírio, contendo coenzima Q10, que pode fornecer respostas sobre sua utilização em terapias mais amplas.
Alterações em genes podem explicar defeito nas mitocôndrias
As disfunções mitocondriais, diz o cientista, “se caracterizam por uma perda de eficiência na produção de energia da célula e nas reações associadas”. Pode ter origem primária, quando a pessoa já nasce com a mitocôndria “defeituosa”, ou secundária, quando provocada pelo contato com algo ou alguma condição, “como no caso da exposição ao ambiente do espaço”.
De dentro das células, as consequências da disfunção na mitocôndria podem ser múltiplas e tendem a ficar mais severas com o tempo. Como exemplo, Silveira cita doenças neurológicas como Alzheimer, Parkinson e Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), além de doenças cardiovasculares, diabete e algumas doenças musculares, todas comprometidas por disfunção mitocondrial.
Nas amostras biológicas dos astronautas, os pesquisadores encontraram deficiência de vitamina D e aumento de moléculas inflamatórias, de triglicérides e LDL (colesterol ruim), de parâmetros do estresse oxidativo e do hormônio renina (que participa do controle da pressão arterial). Também encontraram informações genéticas que mostram mudanças em células e tecidos como um todo, mas, em especial, observaram “alterações em genes ligados à função da mitocôndria, à produção e manutenção de proteínas, na resposta imune inata, no metabolismo, no ciclo celular e alguns outros, como alterações em genes do ciclo circadiano”, completa Silveira.
Visão sistêmica de brasileiro abriu portas da Nasa
Farmacêutico-bioquímico, formado em 2008 pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP, Silveira trabalha hoje na Queen´s University Belfast, Irlanda do Norte. O caminho acadêmico até Belfast passou antes pelo mestrado na FCFRP; doutorado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, com estágio no Institut de Recherche en Cancérologie de Montpellier, França, e pós-doutorado na Medical University of South Carolina, EUA, onde atuou por três anos e começou seu envolvimento com a Nasa.
Silveira deixa claro que ele não trabalha para a Nasa mas, sim, com a Nasa. “Faço parte de um projeto chamado Nasa Genelab que coordena e pretende popularizar a pesquisa em Ômicas Espaciais nos Estados Unidos”, adianta o pesquisador, que também participa do Time Tópico em Ômicas Espaciais financiado pela Agência Espacial Europeia. Mas tudo começou quando, ainda nos EUA, seu chefe, o professor Gary Hardiman (nos EUA e também agora na Irlanda), recebeu um e-mail da universidade, convidando para pesquisas em parceria com a agência espacial norte-americana. O projeto que enviaram foi aprovado e a equipe da qual Silveira é parte “entrou para a lista de e-mails da Nasa ”, brinca o brasileiro.
Essa foi a porta de entrada. A pesquisa que agora publicaram começou com o projeto Genelab, conta Silveira, após convencer seu chefe sobre a oportunidade e se oferecer para analisar “padrões de expressão gênica” estranhos em fígado de animais de laboratório. Foi então que o brasileiro reportou aos cientistas da Nasa sua “hipótese mitocondrial” num workshop realizado em 2018 em Orlando, Flórida.
A paixão de Silveira pela abordagem sistêmica – na qual os detalhes só fazem sentido em contexto mais amplo – deu base a sua hipótese e ganhou a aprovação dos cientistas do Genelab. E os estudos se ampliaram na mesma perspectiva, não se limitando a “analisar a expressão dos genes, mas, também, como estavam as proteínas (proteômica), as moléculas pequenas produzidas (metabolômicas) e as marcações no DNA (epigenética)”, diz o pesquisador.
“Fui a pessoa que ligou os pontos e colocou boa parte da descoberta em contexto. Mas o trabalho é muito maior que isso. Foi um esforço hercúleo de todo o grupo, em especial do pessoal do Genelab da Nasa”, finaliza Silveira, adiantando que agora quer continuar trabalhando para aumentar a pesquisa em ômicas espaciais baseada na Europa e, também, desenvolver projetos com a USP, principalmente com a FCFRP e a FMRP.