Exclusivo | Prefeitura ignora indícios de fraude e contraria parecer jurídico para contratar fundação que fez reforma administrativa

Os mesmos professores da USP Ribeirão eram diretores de duas das três fundações procuradas para enviar orçamento, o que contraria a lei; secretário de Governo ignorou ligação entre os quadros diretivos

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Palácio Rio Branco, sede da prefeitura de Ribeirão Preto - Foto: Divulgação

Coincidências de composição de diretoria de fundações concorrentes; processo de compra feito contra parecer do departamento jurídico da própria prefeitura; executores do projeto que acabaram nomeados em cargos comissionados na administração Duarte Nogueira (PSDB) e falha na análise de documentos básicos para a contratação. Esses são alguns dos indícios de irregularidades encontrados na contratação, pelo valor de R$ 690 mil, da fundação que executou o projeto para a reestruturação administrativa da Prefeitura de Ribeirão Preto.

A reportagem do Grupo Thathi analisou as 280 páginas do processo administrativo para contratação do serviço e ouviu dezenas de especialistas em direito administrativo e licitações, além de integrantes do Ministério Público, estadual e federal, e também da Polícia Federal. O resultado dessa investigação será contado em três diferentes matérias.

Na primeira delas, serão analisados os problemas registrados antes do processo de dispensa de licitação e na escolha das fundações que apresentaram as propostas; no segundo texto, as relações entre os diretores dessas fundações e, no último texto, as possíveis implicações criminais e administrativas a que estão sujeitos os participantes do processo de compra, se comprovadas efetivamente as irregularidades.

O início

Os primeiros passos para a contratação começaram em janeiro de 2021, com o convite às fundações para que enviassem orçamentos à prefeitura. O e-mail com o pedido dos orçamentos foi enviado pelo secretário de Governo, Antônio Daas Abboud, o Toninho, em pessoa, para três fundações que atuam em Ribeirão Preto. No documento, o secretário enviou os termos da futura contratação e solicitou o envio das propostas.

O processo se desenvolveu durante os primeiros meses de 2021 e o contrato foi assinado efetivamente em fevereiro do mesmo ano. Nos meses seguintes, foi integralmente pago pela administração. O resultado do trabalho serviu para a implementação de mudanças estruturais nos cargos da administração, entre elas a criação da Secretaria de Justiça, hoje ocupada pelo advogado Alessandro Hirata, também professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos fundadores da Fundação para o Desenvolvimento do Ensino e da Pesquisa do Direito (Fadep), a entidade escolhida para realizar o serviço.

O primeiro dos indícios de irregularidade salta aos olhos logo na decisão de contratar o serviço sem licitação. Isso porque, desde o início do processo, a recomendação do departamento jurídico da própria prefeitura foi para que o procedimento para a escolha da prestadora de serviço ocorresse após a abertura de uma licitação, medida que a administração pública ignorou.

Parecer da procuradora Ana Seixas Paterlini – Foto: Reprodução

O documento, assinado pela procuradora Ana Maria Seixas Paterlini, aponta uma série de irregularidades no processo, que contrariam a lei de licitações, que determina que “a contratação direta é exceção à regra” e que “os requisitos exigidos no caso de dispensa devem ser demonstrados de forma inequívoca”.

“Cumpre destacar, inicialmente, que a regra é: sempre que existir mais de uma instituição ou empresa capaz de executar o mesmo objeto, a licitação é de rigor, ainda que o orçamento de uma delas seja menor”, diz o parecer jurídico da administração.

Para a administração, entretanto, a contratação pode ser enquadrada como passível de dispensa de licitação por ser direcionada a “instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos”, nos moldes do artigo 24, inciso XII, da Lei de licitações.

A procuradora Ana Seixas, entretanto, discordou. “No caso em análise, o órgão requisitante não indicou e nem fundamentou qual fundação pretende contratar, como a relação de compatibilidade do objeto do contrato com o objeto societário da instituição e suas finalidades; da inquestionável capacidade e reputação ético-profissional e a razoabilidade do preço”, escreveu.

Por conta disso, recomendou que a contratação não deveria ser feita por dispensa de licitação. “Diante do exposto […] entende-se […] por não atendidos os requisitos para a contratação direta, nos termos do inciso XIII do art. 24 da lei nº 8,666/93″, finalizou a procuradora.

Entendimento semelhante tem o advogado Airton Freitas, especialista em licitações. “Numa análise preliminar, o caso não parece se adequar a nenhuma das hipóteses que justificam a dispensa de licitação”, acredita.

O parecer, entretanto, não foi suficiente para reverter a decisão da prefeitura em fazer a contratação de forma direta, e o processo continuou.

Contratação

Além de não realizar a contratação por licitação, como determina a lei, para definir quem seria contratada para realizar o estudo, a administração enviou a cotação de preço a três instituições: a Fadep, instituição ligada à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP); a Fundação Sada Assed, que tem os professores da Faculdade de Direito USP Ribeirão Gustavo Assed e Alessandro Hirata entre seus diretores, e a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).

Todas as fundações enviaram propostas para a execução dos serviços: a Fadep apresentou um orçamento de R$ 690 mil, enquanto a Sada de R$ 780 mil e a Fipe, que contestou os termos do processo de contratação, mas apresentou proposta no valor de R$ 1,2 milhão.

Fipe contestou termos da consuta feita pela prefeitura – Foto: Reprodução

A Fadep foi a escolhida por ter apresentado o preço mais baixo e efetivamente prestou o serviço, mesmo após queixa formal da Fipe, para quem, em manifestação anexada ao processo:

“O termo de referência elaborado pela municipalidade […] não traz, em detalhes ou maior grau de especificação, o foco principal do trabalho pretendido, a estrutura administrativa e organizacional do município, bem como quantitativos, seja de pessoal, seja de entes da administração que estariam relacionados, direta ou indiretamente, com o trabalho”.

Mesmo com o protesto da Fipe, o processo seguiu sem qualquer modificação.

Sem composição

Além de não levar em conta a indicação de seu próprio departamento jurídico, que recomendava a realização de licitação, e a declaração de uma das concorrentes, a Fipe, a Prefeitura de Ribeirão Preto também deixou de considerar, em sua análise, a composição diretiva das fundações que enviaram os orçamentos.

Embora a análise desses documentos seja considerada indispensável para a contratação por dispensa de licitação, nas palavras da procuradora Ana Seixas, “os autos não vieram instruídos com os documentos de constituição das instituições que apresentaram os orçamentos”.

De acordo com o especialista em direito administrativo Thiago Coletto, a ação impede a contratação. “É um dos requisitos básicos para a compra direta, inclusive para qualificação das empresas que venham a oferecer as propostas”, informa.

Curiosamente, o processo de compras da Prefeitura de Ribeirão Preto parece não ter notado a falta dos documentos. A ponto de, em despacho proferido pelo secretário de Governo, Antônio Daas Abboud, a administração ter considerado a composição administrativa das fundações regular, mesmo sem qualquer documento anexado ao processo que abordasse esse tópico.

Scretário Toninho atestou que não havia relação entre o quadro administrativo das fundações – Foto: Reprodução

“Declaro, ainda, que não foi detectada qualquer relação entre as empresas utilizadas para a estimativa de preço de cada item da requisição supramencionada”, informou o secretário, em peça que consta do processo de compras. E, com o aval de Abboud, o processo seguiu seu curso.

Relações perigosas

Se analisou a composição diretiva das fundações – que não foram anexadas ao processo – o secretário Toninho não notou uma situação incomum: a Fadep tinha, em entre seus componentes, Alessandro Hirata, que é fundador da instituição, e Gustavo Assed, que era presidente da fundação na época da assinatura do contrato. Ambos são especialistas em direito administrativo e professores da USP.

Já a Sada Assed, outra das empresas instadas a enviarem seu orçamento para o processo de compra por dispensa de licitação, tem entre seus diretores os mesmos Gustavo Assed, que é vice-presidente da instituição, e também Alessandro Hirata.

Na prática, significa que duas fundações diferentes, mas comandadas pelas mesmas pessoas, apresentaram propostas para a execução do serviço. A similaridade de diretores, entretanto, passou despercebida pela administração, que realizou a contratação para a execução dos serviços.

Composição societária da Fundação Sada Assed – Foto: Reprodução

A situação, segundo todos os especialistas ouvidos pela reportagem, é irregular e pode indicar um conluio entre as fundações, o que configuraria uma fraude ao processo de dispensa de licitação, uma vez que as fundações poderiam, através de seus dirigentes, ter acesso às propostas uma das outras.

A questão, inclusive, já é de conhecimento do Ministério Público, que viu irregularidades no caso, confirme abordaremos em matérias futuras. “O MP abriu uma investigação sobre o assunto e está apurando o motivo pelo qual a administração não realizou a licitação”, disse o promotor Carlos Cezar Barbosa, que cuida do caso.

Sem amparo legal

Apesar do posicionamento incomum da prefeitura, ignorando seu próprio parecer jurídico e atestando uma informação sem base em documentos, a participação de empresas com os mesmos sócios já foi vetada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em processos de dispensa de licitação. Entendimento unânime dos especialistas ouvidos pela Thathi afirma que as mesmas regras valem para fundações.

Gusavo Assed assinou contrato como presidente da Fadep e era vice-presidente da fundação Sada Assed – Foto: Reprodução

O Tribunal, no acórdão 010.468/2008-8, declara expressamente que:

“Torna-se incompatível [a participação de empresas com os mesmos sócios, ou o mesmo grupo econômico] quando a modalidade utilizada for carta-convite ou se tratar de uma dispensa de licitação, eis que nessas hipóteses não há ampla divulgação, o que por si só, compromete a competitividade inerente às aquisições e contratações públicas”.

Não é a única jurisprudência do TCU sobre o tema. No acórdão 44/2009, o TCU indica que a administração “abstenha-se de permitir a participação, nas aquisições de bens e contratações de serviços financiadas com recursos federais, de pessoas jurídicas integrantes de um mesmo grupo empresarial, evitando-se, dessa maneira o ocorrido na Carta Convite nº 01/2005, ocasião em que deixaram de ser observados os princípios da legalidade e da moralidade, bem como o art. 23, § 3º, da Lei nº 8.666/1993”.

Outro lado

Procurada, a prefeitura de Ribeirão informou que “o processo foi regular” e que “o secretário de Justiça, desde que assumiu o cargo não faz mais parte da diretoria da Fundação [Fadep]”. A reportagem também tentou ouvir o secretário Toninho e Alessandro Hirata, mas não obteve retorno até o momento. Se isso ocorrer, o texto será atualizado.

Gustavo Assed, professor da USP e ex-presidente do Botafogo – Foto: Redes Sociais

Procurado, Assed confessou o conflito de interesses na situação, mas ressaltou que, enquanto vice-presidente da Sada Assed, indicou ao presidente da fundação seu impedimento, mas que não pôde impedir a participação da fundação no processo de compra.

“Eu me dei por impedido, já que tenho um conflito de interesse, já que apresentei proposta pela minha fundação lá da USP. Mas disse [à Sada Assed]: não posso impedir vocês de apresentarem. Eu tenho conflito de interresse, mas vocês não. Como eu, vice-presidente da Sada Assed, poderia impedir a fundação de participar”, disse. “Se eu falo: não aprensentem, estou impedindo a fundação de participar”.

Da mesma forma, a Fadep também foi questionada, e ainda não se manifestou. Já o Ministério Público informou que investiga o caso.

*Colaborou Tainá Lourenço

Erramos: A reportagem errou ao afirmar que a  frase “Evidentemente, há duplicidade de diretores e uma vedação legal. Como houve um processo de compra que desrespeita essa regra, essa questão deve ser apurada”, foi dita pelo jurista Thiago Marrara, especialista em Direito Administrativo. O professor Marrara não foi ouvido para a elaboração desta matéria. A frase foi proferida por um advogado especialista em licitações e que pediu para não ser identificado. O texto foi corrigido.