– Vou querer quatro parangas e três pinos, diz o usuário ao traficante. Neste momento, mais um Silva de 15 anos ou pouco menos caminha ao esconderijo da praça. Saca os entorpecentes, entrega o pedido ao cliente e recebe o dinheiro. Ninguém sabe de nada.
Novos clientes chegam e são atendidos da mesma forma pelo adolescente pobre. O ato se repete durante todo o plantão do menor traficante, com pouca folga. Mesmo durante forte tempestade ou com sol de rachar o bico, a ação só se interrompe por um único motivo: a aproximação de um camburão da Polícia Militar. Neste momento, correria e pinote.
Nem sempre a tentativa de fuga do flagrante é bem sucedida. Nas mãos do homem de farda, o jovem entrega os entorpecentes, o dinheiro e conta o que sabe na delegacia – em partes, para não ser X9.
A rotina de um menor do tráfico, no entanto, não pode ser romantizada. Quais são os motivos que levam uma criança ou adolescente a abandonar os estudos e a vida de um jovem padrão da família tradicional para arriscar tudo com a carreira no crime?
A ausência do Estado, a desestrutura familiar, falta de estabilidade, invisibilização social e o desemprego são alguns dos fatores indicados. Afinal, como contribuir para o sustento da família sendo por vezes o homem da casa em decorrência da ausência do pai, mas sem qualquer ensino e referência para perspectiva de futuro? Opções rasas.
Sonhos que são esquecidos pela falta de um qualquer, opressão por todos os lados do momento em que o sol nasce ao mesmo enquanto desce para dar brilho à lua. Dificuldade em casa, a família que mora sem nem saneamento ou asfalto e iluminação pública e a necessidade de um corre pela sobrevivência em dignidade. Humilhação.
O dinheiro fácil e rápido está no crime, independente da escala imaginária e penal em artigo. Parafraseando um MC dos tempos contemporâneos: a “ocasião que faz o bandido”.
A cada 10 porções vendidas na biqueira, o ganho monetário é estimado em até 20% do valor do entorpecente. O preço depende da droga. Depende da porção. Depende da qualidade. Depende do local. Em média estadual, paga-se R$ 5 pela paranga de maconha, enquanto o pino de cocaína com uma mísera grama está estimado em R$10 por porção cada.
Esse é o suposto valor conquistado em cada diária de trabalho por um jovem do tráfico em esquina qualquer. Às vezes mais, às vezes menos. O sustento para a família é dividido pelos gastos com peças de moda, objetos de interesse do jovem e outras questões que envolvem os desejos materiais de um menor que nunca teve nada.
A atividade é contínua por um período, o menor já não passa fome e até comprou uma moto de 50 cilindradas. Tudo passa. Como o alemão Nietzsche já discutia em seus textos, a dor e sofrimento são inevitáveis na existência do ser. A cobrança bateu em sua porta, o que mais pode fazer? Fique calado, e espere um advogado.
Em cana
Quando são detidos, a legislação brasileira prevê para adolescentes entre 12 até 18 anos a punição por meio de medidas socioeducativas, e estas podem ocorrer por seis meios, conforme determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
São eles: advertência (Artigo 115) ; Obrigação de reparar o dano (Artigo 116) ; Prestação de Serviços à Comunidade (Artigo 117) ; Liberdade Assistida (Prevista nos artigos 118 e 119) ; Semiliberdade (Artigo 120) ; Internação (Artigos 121 a 125).
À Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA), cabe a função de aplicar medidas socioeducativas de acordo com tais diretrizes e normas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
No último Boletim estatístico divulgado à imprensa pelo Governo de São Paulo em 12 de abril de 2024, notifica-se a presença de 4.546 adolescentes infratores na Fundação. Deste total, 37.31% estão sem liberdade por decorrência do tráfico de entorpecentes. O crime representa o maior índice de detidos.
3.219 estão na faixa etária entre 15 e 17 anos. 3.602 jovens detidos estão em internação, conforme o ECA. Jovens de 12 a 14 anos estão em 308, enquanto os maiores de 18 representam 1.032 infratores.
As peles pardas e pretas fazem maioria entre os infratores, e representam 70.65% dos detidos. Sobre a pele branca, esta representa 28.78% dos jovens em situação jurídica irregular.
“O tratamento dado pela Fundação Casa ao jovem infrator, têm evoluído ao longo dos anos, inserindo em seus projetos com jovens, atividades das mais diversas, proporcionando ao jovem segregado, além do estudo, a oportunidade de se profissionalizar para o mercado de trabalho”, explica o advogado Élton da Silva Ramos, que responde como presidente da Comissão da Criança e do Adolescente na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
Ainda na Fundação CASA, por fala contínua a explicação dada, Silva Ramos ensina sobre as práticas educativas da instituição, de esporte e a profissionalização do jovem infrator por meio de convênios firmados pelo Governo de SP.
“No âmbito da instituição, o adolescente têm: a escolarização regular com aulas no ensino fundamental e médio (adequado a cada jovem); a prática de diversas atividades esportivas, interna e externa, esta em casos de participação em campeonatos organizados pela instituição ou por meio de parcerias; oportunidade de curso profissionalizante através de convênios firmados pelo Estado com diversas empresas e escolas profissionalizantes (cursos de marcenaria, mecânica, confeitaria, panificação, empreendedorismo)”.
Em Ribeirão Preto, 526 adolescentes estão detidos. O número representa uma ocupação de 82% da capacidade da DRN (Divisão Regional Norte), que pode guardar até 640 jovens infratores.
Dados exclusivos da Polícia Civil de Ribeirão Preto, divulgados ao THMais por meio do DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais) e DISE (Delegacia de Investigações sobre Entorpecentes) indicam que, em 2023, 12 adolescentes foram apreendidos e liberados em 6 atos infracionais.
Em 2024, até o fechamento deste texto, foram 11 adolescentes apreendidos e liberados em 10 atos infracionais.
Mas afinal, a detenção do adolescente é realmente funcional no combate ao comércio das drogas?
Paz, Justiça e Liberdade
“Nada como um dia após o outro dia”, como já se ouvia em canto corrido pela quebrada. O nome sujo na justiça dos homens, a exclusão no sistema, a rotina de violência, o esquecimento. Como dar a volta por cima?
Na primeira quinzena de maio de 1888, a Lei Áurea derrubou a escravidão no Brasil. Pela assinatura da princesa em cargo de autoridade regente, os negros foram livres. Sem um puto no bolso, usufruíram da liberdade sem teto ou um qualquer direito. Terra rasa.
2024. O menor abandonado sai das quatro paredes que o trancam e encontra o mundo. Poucas oportunidades de fato. Talvez mecânico, quem sabe. Ou então algum trabalho de braço na feira. A conversão para a igreja também não é descartada na busca por uma vida nova. Qual caminho seguir? Desordenado e magro, o que resta é pedir esmola.
O crime convida, assim como o crack convida, e também o álcool. Desde 1888, a liberdade é abstrata para o pobre preto do Brasil. Meritocracia (?).
“Sempre fui sonhador, é isso que me mantém vivo
Quando pivete, meu sonho era ser jogador de futebol
Vai vendo!
Mas o sistema limita nossa vida de tal forma
E tive que fazer minha escolha, sonhar ou sobreviver
Os anos se passaram e eu fui me esquivando do círculo vicioso
Porém o capitalismo me obrigou a ser bem sucedido
Acredito que o sonho de todo pobre, é ser rico
Em busca do meu sonho de consumo
Procurei dar uma solução rápida e fácil pros meus problemas
O crime
Mas é um dinheiro amaldiçoado
Quanto mais eu ganhava, mais eu gastava
Logo fui cobrado pela lei da natureza
Vish, catorze anos de reclusão
O barato é louco”
(Racionais MC´s x Afro X – A Vida É um Desafio)
Sobre o assunto, a reportagem novamente questionou Élton da Silva Ramos, presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB.
“Diversos jovens que cumprem medidas socioeducativas relatam que iniciaram a atividade delinquente para terem algo melhor em casa e “melhorar de vida”. Ou seja, iniciam no meio infracional exercendo verdadeiro trabalho infantil”, explica.
O retorno ao crime. Em liberdade sem acompanhamento, mesmo com todas as medidas educacionais e de preparo técnico, o jovem pode retornar à prática de delitos. Em casos, são até “recrutados por criminosos para a vida delinquente”, como afirma em resposta o advogado.
“Há casos em que o seio familiar não contribui para sua efetiva ressocialização, seja porque os pais trabalham o dia todo para manutenção do lar e não têm o controle necessário dos filhos, seja por que são abandonados pela família, seja porque a própria família está inserida no meio criminoso, ou porque estão em local de moradia e ambiente perigosos, em bairros periféricos e tomados pela violência, principalmente com o tráfico de drogas que assola nosso país”, continua Silva Ramos.
O presidente da Comissão da Criança e do Adolescente pontua ainda a importância do acompanhamento escolar, a inserção desse jovem em curso profissionalizante e o acompanhamento de órgãos públicos.
“É de extrema importância e de toda delicadeza, que o jovem seja, ao sair de uma medida de internação, devidamente inserido em programa de acompanhamento escolar de modo regular, inserido em cursos técnicos e profissionalizantes através do órgão público competente, e em acompanhamento familiar. Com estes zelos e cautelas, certamente reduzirá o risco de que o jovem volte a infracionar”, conclui.
Nesta segunda-feira (22), o programa Mentoria Ribeirão tratou sobre a favela. Sob apresentação de Chaim Zaher, o tema foi debatido com: Antônio Alberto Machado, Roberto Guimarães, João Marques, ‘Cebola’, Felipe Xavier, Wallace Rafael e outros ilustres mais. Confira o episódio: