Ilegalidades e falta de acesso: pesquisadora analisa a geografia do sistema penal brasileiro

Com base nas ideias do geógrafo Milton Santos, conceito de “circuito espacial penal” ajuda a entender paisagens penais e os desafios da justiça no Brasil

A Polícia Civil é responsável pela investigação e coleta de provas em inquéritos – Foto: Philippe Gomes/Governo do Estado do Amapá via Wikimedia Commons

O Brasil como um todo vive uma desigualdade no acesso aos direitos e garantias do ir e vir e da inocência. Não sendo o bastante, os lugares de residência de maioria negra (pretos e pardos) – e que, ao mesmo tempo, são os dos pobres -, são alvos da ação do sistema policial e da justiça, mesmo sem garantir o acesso à defesa. Essa é a avaliação da geógrafa Carin Carrer Gomes, com base nos resultados de sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A pesquisadora elaborou o conceito de “circuito espacial penal”, que serve para operacionalizar a teoria científica do espaço geográfico e fundamentar o entendimento dos usos ilegais do sistema penal.  Isso porque, embora existam normas que regem toda federação, a realidade dos estados e das práticas locais muitas vezes resulta em ilegalidades, tais como abusos de poder por parte de autoridades e condições desumanas nas prisões. O conceito é um instrumento de análise feito a partir de uma síntese das etapas indissociáveis do sistema policial, penitenciário e justiça criminal em sua diversidade de ações nos seus múltiplos objetos, agentes, temporalidades, instituições e lugares. Ela exemplifica esses elementos a partir da ação de um batalhão da polícia militar.

“Tem que pensar que essas ações, da abordagem ou mandado de prisão – que são ações reguladas pelo sistema penal -, têm uma escala no local e há institutos legais que as disciplinam [que] são de uma escala da Federação”. Carin Gomes.

A compreensão dessas etapas ajuda a identificar onde e como ocorrem práticas ilegais ou abusivas. Assim, a partir do circuito, a autora se atenta a algumas paisagens penais. Elas consistem em análises geográficas do circuito em diferentes estados brasileiros, como São Paulo, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Acre, para ilustrar como ele se manifesta em contextos específicos. A avaliação foi feita a partir de imagens de satélite do Google Earth e projeções cartográficas do sistema penal, agrupadas por densidade do meio técnico-científico-informacional (MTCI) e analisadas também por imersão da autora na tentativa de acessar a defensoria pública.

Varas e comarcas

As comarcas são divisões territoriais do sistema judiciário brasileiro, correspondendo a um ou mais municípios, e são organizadas por varas, que são unidades judiciárias responsáveis por julgar diferentes tipos de processos.  Nas comarcas que atendem municípios com maior densidade e complexidade de conflitos, há as varas criminais, que, por sua vez, são especializadas no julgamento de crimes comuns, como homicídios, roubos e furtos.  Já as varas especializadas em execuções penais têm a função de acompanhar e fiscalizar o cumprimento das penas impostas,  e gerenciam questões como progressão de regime e concessão de benefícios aos condenados.

Ao estudar as paisagens penais frente à expansão do meio técnico-científico-informacional, ela percebe que “as novas penitenciárias  – inclusive as federais – avançam, às regiões de fronteira agrícola no território brasileiro”, no entanto, isso não significa infraestrutura penal para os sujeitos garantirem seus direitos. Tem-se, então, esses estabelecimentos espalhados pelo interior do Brasil e, ao mesmo tempo, crescem os números de divisões de comarcas e das varas criminais, enquanto as varas especializadas em execuções penais são raras e, em sua maioria, estão nas metrópoles.

Espaço como fonte para o direito

O contato de Carin com o Fórum do HipHop durante sua pesquisa de mestrado foi crucial para elaboração do trabalho atual por responder “a necessidade de quem está dentro da Universidade a pensar sobre as queixas” do movimento negro. Assim, a geógrafa começa “a pensar como discutir essas queixas da questão racial e contribuir a partir do método geográfico”.

A tese pode ser considerada como “miltoniana”, devido a boa parte de sua base teórica ser a obra de Milton Santos, um dos mais importantes geógrafos brasileiros. Santos deixou um método de análise das realidades sempre em dinamismo e tem como um dos fundamentos a dialética em que cada lugar é possível que apreender o mundo. A autora explica que conduziu uma pesquisa sobre o acesso à justiça também via Defensoria Pública, realizando entrevistas, ligações e visitas a diferentes instituições, como também fóruns e tribunais.

“Eu estava sempre recompondo essas percepções e testando o estado da arte, ou seja, testava o que já havia sido produzido sobre o tema na literatura empiricamente, e também testava os dados primários que sistematizei pioneiramente no Brasil”, explica Carin.

Deve-se essa metodologia à orientação de Ricardo Mendes Antas Junior, professor livre-docente do Departamento de Geografia da USP, que em sua tese de doutorado defendeu que o espaço é fonte do direito. Antas Junior, por sua vez, foi orientado por Maria Adélia Aparecida de Souza e pelo próprio Milton Santos.

O “espaço ser fonte do direito” refere-se à ideia de que o espaço geográfico e as condições sociais, culturais e econômicas de um determinado território são fontes não formais para criação e a aplicação – ou não aplicação – das normas jurídicas. “O espaço geográfico (território) condiciona a gente o tempo todo”, afirma Antas Junior. Isso implica em que o direito não é apenas uma construção abstrata ou uma imposição do Estado, mas que ele é moldado e condicionado pelas realidades materiais e sociais em que se insere.

Política de Estado

Dessa maneira, para analisar e compreender o espaço como norma efetiva do sistema penal, ou seja, território como fonte material e não formal do direito, é necessário considerar, no atual período histórico, a globalização, portanto a expansão do MTCI, o meio técnico-científico-informacional . “O meio, a atual natureza urbana do Brasil e do mundo, ou seja, as diferentes densidades técnicas, de informação e uso da informação, de normas e de comunicação, garante a prática do sistema penal, ora como punitivismo, ora como garantias”, explica Carin, e alerta: “O uso do sistema penal como temos hoje pune e continua a seguir como modelo cívico escravocrata.”

“O investimento em técnicas para a militarização da polícia, como a compra dos fuzis israelenses, para algumas diligências policiais, em alguns estados, chega com intenções de guerra, empodera as fardas da polícia militar para um dado uso. Já a falta de investimento na polícia civil, impossibilita o acesso à produção de inquéritos com provas robustas e legais”, detalha a pesquisadora.  

Ainda há o problema com os deslocamentos de mais de 600 km de distância do seu local de origem para penitenciárias no interior. Neste contexto, justificar que a pessoa e a família têm acesso aos meios informacionais para comunicação legal e necessária “é desconsiderar os ‘desconectados da rede’, termo de Mait Bertollo e desconsiderar as condições físicas dos estabelecimentos”, aponta.

“Como acessar o juiz? Como acessar o Ministério Público, como acessar a Defensoria Pública que estão na região de concentração de densidade do sistema penal?”, questiona a geógrafa.

“Quando temos apenas varas criminais e estabelecimentos penais, com outros elementos também do direito e do território, há um aumento do punitivismo, o que resulta em um maior número de prisões, prisões provisórias e prisões questionáveis, em detrimento do acesso da população ou do réu à totalidade do sistema de Justiça, incluindo a execução penal”, detalha.  A tese possibilita, desse modo, “pensar uma política de Estado para encarar a totalidade das agências, instituições e agentes na prática penal”.

Não se trata de “simplesmente negar  o sistema penal, mas realizar os fundamentos constitucionais nos lugares e nas diversidades federativas”. Vale a pergunta da autora, “quais são os usos efetivos desse circuito que permitirá aos cidadãos em qualquer lugar acessar seus direitos e garantias de liberdade, inocência e justo processo penal?”.

A tese em Geografia Humana defendida na FFLCH pode ser acessada aqui.

**Texto por Jornal da USP

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