Implantação do uso de câmeras por policiais reduziu em 63,7% a letalidade em dois anos

Policiais militares no Estado de São Paulo - Foto: Divulgação

A partir do Programa de Olho Vivo na Polícia, incorporado em 2020 pela Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP), alguns batalhões militares passaram a utilizar as Câmeras Operacionais Portáteis, também conhecidas como COPs, acopladas às fardas dos agentes de segurança pública com o objetivo de reduzir os níveis de letalidade e vitimização policial. Segundo relatório realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o projeto foi responsável pela redução, entre 2021 e 2022, de 63,7% da letalidade policial geral, sendo 33,3% da letalidade nos batalhões que não aderiram ao sistema e 76,2% da letalidade nos batalhões que passaram a utilizar as câmeras.

Contudo, apesar dos avanços associados à incorporação do programa, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelou que jovens negros, pobres e residentes das periferias nacionais seguem sendo o maior alvo da letalidade policial. Até o ano passado, 62 das 135 unidades haviam integrado o programa, com um avanço gradual da participação da PMESP.

Daniel Edler, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, explica que para debater o tema é preciso compreender a letalidade policial como uma questão de política pública que deve ser estabelecida anteriormente. “Isso não é um consenso no debate público. A gente vê muito o discurso de que as mortes causadas pela intervenção policial são quase como uma consequência ou um efeito paralelo das políticas normais de segurança pública”, argumenta.

É possível notar, entretanto, que a realização de um policiamento efetivo que é capaz de reduzir crimes contra a vida e contra o patrimônio pode ser realizado sem uma alta taxa de letalidade. “A gente já viu, na verdade, uma série de programas de redução de homicídios que tiveram como efeito também uma redução do número de mortes causadas pela PM”, reflete o especialista. Como exemplo, observa-se o Programa Fica Vivo! — realizado em Minas Gerais, o Programa Pacto Pela Vida — feito em Pernambuco, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) — do Rio de Janeiro e o Projeto Estado Presente — do Espírito Santo.

Mudança

O especialista considera que os projetos que apresentam um olhar mais holístico para essa questão, ou seja, que olham para a segurança pública como uma questão de polícia, mas também como um projeto que pode apresentar uma série de outras estratégias de intervenção nas comunidades de forma a reduzir o risco de violência costumam ser mais efetivos.

“A gente pode pensar o policiamento de uma forma mais inteligente, sendo orientado por problemas com saturação em áreas onde existe uma concentração de crimes e com um policiamento preventivo para evitar que os crimes aconteçam”, explica Edler. O pesquisador avalia ser necessário que se faça uma dissuasão ao invés de uma repressão, com o estabelecimento de que, para existir o combate à criminalidade, não é necessário que a polícia mate tantas pessoas.

Assim, compreende-se que a supervisão do trabalho da polícia é também uma necessidade, momento em que as câmeras entram nessa discussão. Edler comenta que existem pesquisas que revelam que além da diminuição da violência policial, pode-se notar que as COPs apresentam um efeito dissuasório, fazendo com que as pessoas que costumavam reagir às ações policiais se tornassem menos violentas.

O especialista analisa ainda que, apesar de os estudos revelarem os aspectos significativos na redução do uso da força por policiais, não é correto acreditar que esse resultado irá ser reproduzido ao longo do tempo, uma vez que as COPs entram em um contexto institucional amplo em que outras medidas estão sendo implementadas. “Só as câmeras, especificamente, não funcionam se os agentes começarem a perceber que os abusos de autoridade e que o uso da força não levam à condenações, por exemplo, no sistema de justiça criminal, se a Promotoria e juízes não usam as imagens, se a defensoria tem dificuldade de usar essas imagens para comprovar que houve tortura policial ou uso da força”, explica o pesquisador.

Dessa forma, não basta que a polícia militar invista nessas câmeras, sendo necessário que sejam verdadeiramente incorporadas ao sistema de justiça para responsabilizar os policiais. “Eu acho que é importante pensar que nenhum equipamento implementado na polícia é uma bala de prata sozinho, ele precisa de todo um contexto de interesse institucional em supervisionar o uso da força”, defende.

Discussão

Alguns agentes militares e políticos que fazem parte de debates acerca da segurança pública nacional posicionaram-se de forma contrária ao projeto alegando que o uso de câmeras poderia inibir o trabalho policial. Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do ex-presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, por exemplo, relatou, por meio de suas redes sociais, que o uso constante das câmeras desestimularia o trabalho do PM e que a sociedade sentiria os efeitos da medida em breve.

Edler retruca explicando que “pesquisas demonstram que as câmeras não tiveram impacto no número de prisões em flagrante, então não há uma redução na produtividade. As câmeras reduzem o uso da força pela polícia, mas isso não gera um aumento do número de roubos ou de homicídios no território”.

O pesquisador adiciona que o que acontece ativamente a partir da utilização desse sistema é o aumento do número de registros de ocorrências, já que era comum que, em casos corriqueiros, estes não fossem realizados. Dessa forma, foi possível observar o aumento do número de registros de ocorrências por violência doméstica, por exemplo, contando na realidade com índices de aumento da produtividade policial.

Melhorias

Para além do uso das COPs em diferentes batalhões policiais, existe uma série de medidas que podem ser tomadas para melhorar o sistema de segurança pública nacional. Em primeiro lugar, para Edler, é necessário aumentar a transparência da organização como um todo. “Já começam a existir algumas denúncias de que as imagens não são sempre utilizadas e que os polícias começam a tentar driblar as imagens, ou tapando as imagens, ou o policial que está fazendo algo que está infringindo a lei se afasta de outros que estão com as câmeras”, exemplifica.

Outra melhoria poderia ser realizada por meio da resguarda das imagens. “A polícia usa essas imagens no canal oficial do YouTube fazendo um pouco de sensacionalismo. Talvez o uso dessas imagens sendo acessado apenas por demanda da procuradoria ou da defensoria e, em casos específicos, de jornalistas, poderia ser um pouco mais ético, não sendo só uma propaganda da polícia”, avalia o especialista.

Por fim, o pesquisador explica que o crime é multicausal, assim é difícil afirmar que uma variável específica apresentou todo esse impacto. Existem diferentes estudos que demonstram que medidas como o estatuto do desarmamento, o aumento do projetos de ensino integral — principalmente para estudantes do ensino médio —, as mudanças demográficas — como o envelhecimento da população —, entre outras, apresentam um impacto nesse cenário. “Um programa de segurança pública tem que tentar olhar para todos esses fatores e ver o que ele pode fazer”, acrescenta. Assim, apesar de seu impacto positivo, é necessário que um maior esforço institucional seja realizado para a mudança da situação atual.

**Texto de Jornal da USP 

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