“No meio do horror da guerra, quando uma câmera abre suas lentes, ela lança uma fresta de luz nesse mundo escondido pelo próprio mundo.” A frase é uma das incontáveis pérolas contidas no livro “Uma fresta de luz no porão da sociedade”, do fotojornalista ribeirão-pretano Joel Silva, que narra suas experiências como correspondente fotográfico por mais de vinte anos em locais como o acampamento das Farc, o Oriente Médio na Guerra da Síria e na revolta da primavera Árabe na Líbia, além do massacre no Cairo, capital do Egito, Golpe Militar em Honduras, ocupação do exército no Morro do Alemão e campos de refugiados na África. Premiado até pela ONU, nosso conterrâneo não passa pelas histórias do livro como um narrador impessoal, que apresenta incólume um jornal frio e distante das tragédias ali narradas. Muito pelo contrário. Depois de grandes coberturas e alguns encontros tensos com a morte, Joel deixa os cliques da câmera em segundo plano para depositar nas palavras as emoções que só quem conheceu a guerra de perto poderia descrever.
As histórias trazem à tona realidades tão absurdas que o leitor pensa estar em mais uma jornada do herói em alguma série nova muito bem roteirizada, mas a cada momento de tensão nos quais o próprio autor viu-se em circunstâncias que poderiam culminar em seu fim, dividimos com ele o choque e a “clarividência da morte”, citada por ele. “Dizem que, quando estamos às portas da morte, podemos ver nossa vida claramente”, afirma o repórter fotográfico no trecho em que se dá conta, alertado por um jovem egípcio durante a cobertura do massacre no Cairo, em 2013, de que estava sangrando pois havia acabado de levar um tiro na cabeça. Um tiro de raspão que sangrou por dias.
Crianças felizes nadando na piscina do chefe do morro recém morto pelo exército na ocupação do Morro do Alemão, o contato com o guerrilheiro Felipe, das Farc, que entrou na guerrilha por vingança depois de ter o pai assassinado em casa por forças militares e acabou morto dias depois da última foto feita por Joel, a explosão de uma bomba a poucos metros dos jornalistas, o assassinato da equipe de reportagem da Al-Jazeera, logo atrás, numa fuga da Líbia quando a imprensa foi perseguida pelo ditador Muammar Gaddafi, enfim, essas e tantas outras cenas em sequência fazem do livro um thriller envolvente e, mais do que isso, muito reflexivo. Daria um filme! E, a cada cena, você se envolve com os personagens reais, como o autor se envolveu, como se fossem íntimos, pois não se enfrenta perigos juntos sem desenvolver um laço de amizade.
Todas as aventuras e desventuras narradas com maestria trazem à tona, num momento em que a estrutura do jornalismo é abalada por fake news e campanhas detratoras de autoridades públicas, a relevância do jornalismo para elucidar as profundezas mais obscuras da sociedade. O compromisso com os fatos e sua exposição num trabalho sério é ofício necessário para a existência da liberdade. O jornalismo é a defesa pessoal do cidadão contra toda e qualquer injustiça seja ela proveniente de outro cidadão ou do próprio Estado. Claro que existe a falha, o excesso, a escassez, assim como em qualquer atividade humana, mas, sem ao menos uma fresta de luz, os porões tornam-se ambientes inabitáveis enquanto que, a cada facho que irrompe de uma fenda, a escuridão recua, para o nosso bem.
Encerro com uma citação, do último trecho do livro, que diz que “a história não termina com a idosa caminhando de cabeça baixa após ver o sangue escorrer do corpo do neto. Nem na carta de agradecimento de uma mãe que perdeu o filho. Ou com o sorriso de crianças brincando na piscina. Muito menos com a morte de um amigo nos campos de batalha. (…) Há tantas e tantas histórias não terminadas nas entrelinhas de um livro, nos detalhes de uma fotografia… Ainda há muito a ser contado depois do último click. E do último ponto final.”
Você encontra o livro disponível nos sites das principais livrarias.