Lourenço & Lourival, dupla sertaneja há mais tempo em atividade, completa 65 anos

"Cada um tem seu estilo. Tem quem goste. Comprar, eu não compro", afirma Lourival

Dupla durante gravação nos estúdios do Grupo Thathi, em Ribeirão Preto | Foto: Arquivo Grupo Thathi

Lourenço, 87, e Lourival, 85, são irmãos, mas quando falam parecem uma pessoa só. Enquanto um discursa, o outro articula o complemento da frase num ritmo em que é até difícil determinar quem disse o quê.

É um entrosamento maturado durante toda a vida, mais conhecido dos duetos agudos e afinados dos sucessos sertanejos que deram a eles a alcunha de “vozes de cristal”. Em 2025, eles completam 65 anos de carreira, ostentando o título de dupla sertaneja há mais tempo em atividade.

É dessa posição que eles veem o sertanejo atual. “A música sertaneja tem história, mas essas músicas de hoje não têm história”, diz Lourival, ao que o irmão acrescenta: “Sertanejo tem que ser em dueto, primeira e segunda voz. Hoje, é uma voz só. Mas cada um faz o seu, cada um tem seu estilo.”

Bem-humorados, os irmãos respeitam a produção contemporânea do gênero. Dizem que, se os artistas têm público, então estão no caminho certo. Isso não significa que eles gostem dos sucessos atuais.

“Cada um tem seu estilo. Tem quem goste. Comprar, eu não compro”, afirma Lourival.

A opinião de Lourenço sobre as letras de ostentação é quase um conselho. “Ter dinheiro é bom, mas não é bom mostrar, né? Se ficar quieto, ninguém mexe com a gente. Não é bom se mostrar muito.”

Hoje em situação financeira confortável, os irmãos moram no mesmo prédio em Ribeirão Preto, região onde nasceram no interior de São Paulo, na zona rural. “Nosso dinheirinho nunca falta, graças a Deus. Hoje a gente está bem, já nem precisa trabalhar mais, mas a gente gosta de cantar”, diz Lourenço.

Em plena atividade, a dupla é celebrada como remanescente da música sertaneja de raiz, baluarte de uma era arcaica deste gênero em constante transformação. Eles não escondem a felicidade de terem participado recentemente do programa “Viver Sertanejo”, comandado por Daniel na TV Globo.

Também se derretem quando lembram das apresentações na última Festa de Peão de Boiadeiro, em Barretos, palco em que nunca haviam subido. Lourenço & Lourival foram convidados em dois shows —Edson & Hudson, para menos gente, e César Menotti & Fabiano, para uma multidão.

“Já imaginou? Tinha umas 50 ou 60 mil pessoas. Quando nos anunciaram, tremeu até o chão. Na nossa época, era difícil, o circo não rendia que nem hoje, os cantores eram todos pobrezinhos”, eles afirmam.

De ascendência italiana, os irmãos foram criados no mato. “Nós mudamos muito de fazenda”, diz Lourenço. “O pai era meio nervoso. Se falasse alguma coisa que não gostasse, ele já dizia para ir embora. As galinhas já eram acostumadas, já cruzavam as perninhas para amarrar, botar no bambu e nós íamos correr o mundo.”

Na infância, eles tocavam “uma violinha” e ouviam Zico & Zeca e Tonico & Tinoco no radinho de pilha. Pré-adolescentes, começaram a cantar. Ouviram de Barroso, locutor de rádio em Ribeirão Preto e cantor em dupla com Barreto, que deveriam ir a São Paulo em busca de uma carreira.

“Serviço de roça era muito pesado, nós fomos para São Paulo porque era leve o serviço”, diz Lourival, aos risos. “Nós éramos pequenininhos, fraquinhos.”

Lourenço foi até o Rio de Janeiro patentear o nome da dupla e arrumou um emprego como metalúrgico na capital paulista. Os irmãos cantavam em programas de rádio e se apresentavam em circos, onde trabalharam por décadas tocando e interpretando dramas como “Moreninha do Convento” e “O Bandido da Luz Vermelha”.

Em 1960, fizeram as primeiras gravações, um disco de 78 rotações, formato em que trabalharam até 1967, quando lançaram o primeiro LP, “As Vozes de Cristal”. Mas foi só em 1971 que eles protagonizaram uma virada não só em suas carreiras, como em toda a música sertaneja, com a música “Como Eu Chorei”.

Muito influenciada por Roberto Carlos, o brega e a Jovem Guarda, a faixa romântica quebrou uma tradição da música caipira de só gravar modões de viola. “Abriu o caminho para o sertanejo”, diz Lourival. “O pessoal caçoava da gente. Quem gostava mesmo era só aquele povo da roça”, acrescenta o irmão. “Hoje, não. Até o povo da cidade gosta. Naquele tempo, eram só os caipiras.”

A dupla deu o que Lourenço chama de “uma modificada” no estilo caipira que mantinham até ali. “Passamos a falar o português correto —porque falar o português certo é difícil. Mas nós falamos a língua do povo.”

Em muitas ocasiões, músicas já tinham sido gravadas por outros intérpretes só ficaram populares com as vozes de cristal. “Cada um tem um jeito de cantar. O nosso jeito é cantar para cima”, diz Lourival. Para o irmão, é algo que surgiu naturalmente. “Nós não temos grave, se for cantar assim não dá certo. Eu tenho o agudo, então quando a gente termina [um verso], levar para cima fica melhor.”

Essa capacidade de jogar luz em canções esquecidas permanece até hoje. Há menos de dois anos, eles regravaram “Se Ainda Existe Amor”, uma composição de Raul Seixas, já gravada por Balthazar —e por eles mesmos, há 40 anos—, sem muito sucesso. Só no Spotify, a nova versão já tem mais de 3 milhões de reproduções.

Depois de “Como Eu Chorei”, a dupla não parou mais. Em seus mais de 50 discos lançados, emplacou uma série de sucessos sem nunca largar o estilo caipira mais tradicional. Entre suas gravações mais conhecidas estão “Menina da Aldeia”, “Os Três Boiadeiros Japoneses”, “O Telefone Chora” e “Franguinho na Panela”.

A última delas narra a rotina de um trabalhador do campo, que às vezes passa fome, tem que almoçar pão com mortadela ou farinha com ovo —que “desce seco na goela”. A dificuldade compensa porque, diz a letra, a mulher e os filhos têm frango na panela.

Não foi exatamente a rotina de Lourenço & Lourival, que fizeram o caminho contrário —foram do campo à metrópole e depois de estabelecidos levaram o pai e a família a São Paulo. Mas a humildade casa com a poesia. Para os irmãos, que dizem nunca ter atrasado um show, nada é mais importante que respeito ao público.

O segredo para manter as vozes potentes, eles afirmam, é “não fazer extravagância”. “Acabou de cantar? Bebe um refrigerante e vai dormir, não faz graça. Tem gente que canta e fuma três maços de cigarro por dia, bebe pinga, conhaque. Isso estraga a voz. E tem a graça de Deus. Não se cai uma folha se não for por ele”, diz Lourenço.

Cantar, diz Lourival, todo mundo canta. “Quero ver durar cantando, até ficar velhinho, com a mesma voz.”

LUCAS BRÊDA / Folhapress

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