A Mona Lisa está desoladamente só. Acostumada a ser analisada, admirada, invejada e selfada por 10 milhões de turistas por ano, agora ninguém a vê, ninguém a visita. É uma solidão de museu fechado, à meia-luz, digna da piedade do vigilante que passa de hora em hora. Ninguém em volta. A Mona Lisa está só e olha dissimuladamente para a parede oposta onde um imenso Veronese de quase 10 metros de largura parece confrontá-la depois de tantos anos de submissão à popularidade daquela por quem até reis já se curvaram.
As noites da pandemia estão ariscas. Os sentidos em atenção para um perigo iminente e invisível afetam o sono, agora suscetível a qualquer angústia que possa se confundir com crise respiratória. Acorda-se no susto para checar o ritmo das inspirações e expirações. Em particular, independentemente de epidemias ou dias tensos, tenho sensibilidade aguçada para mudanças repentinas de tempo no meio da noite.
Depois de um dia quente e seco, tive o sono interrompido às 2h40 da madrugada (tenho o costume de checar o horário em situações assim). Um vento diferente entrou pelo corredor externo da casa. É um corredor longo para onde estão voltadas as janelas dos quartos. O vento não veio soprando em movimentos desordenados, aos poucos e em ondas. Ele caiu com se fosse um volume de feno compactado, um cubo de ar sólido. Estranha sensação. Rompeu a atmosfera sem aviso prévio e assim se foi , súbito. Foram uns 15 segundos de deslocamento da atmosfera naquele ponto específico do corredor, com a mesma intensidade e ruído do início ao fim. A calmaria voltou e adormeci novamente com duas figuras femininas no pensamento. Minha avó e Mona Lisa.
O fascínio por histórias humanas, a curiosidade pelos causos e coisas da vida e hoje penso, minha inclinação para o jornalismo, formam um novelo cujo fio aparente da meada me leva à Aracy, avó materna com impressionantes três casamentos e três viuvezes. Pensei na vó no meio da noite, me vi entre guri e adolescente, sentado aos seus pés para ajudá-la a enfiar a agulha, servir o mate e ouvir. Ouvia os sonhos que a vó Aracy havia tido na noite anterior e que ela fazia questão de esmiuçar e, principalmente, interpretar. Afinal, o sonho poderia remeter à imagem de um macaco, cachorro ou cavalo e estaria ali, claramente prenunciado, o palpite para o jogo do bicho que ela tanto amava.
Foi num relato da vó Aracy que ouvi falar pela primeira vez sobre a tal gripe espanhola. Impressionado pelos tons dramáticos e até tragicômicos daquela narrativa primitivista, gravei a imagem – em preto e branco na minha imaginação – em que a vó dizia ser uma mortandade tão grande que até os “meio mortos” eram enterrados em covas coletivas. E aquele que esboçasse uma reação, buscando um fiapo de força para se erguer até a beira da cova rasa, logo recebia um golpe de pá na cabeça desferido pelo coveiro temeroso de um retrabalho.
Já adulto, fiz as contas e conclui que a vó deveria ser uma criancinha de um ou dois anos quando a pandemia dizimou um quinto da população do planeta, por volta de 1918. Claro que ela não poderia ter visto nada daquilo, mas certamente ouviu da mãe ou da avó dela e me contou como se fosse uma testemunha daquele caos sanitário. De qualquer maneira, o causo adubou a árvore da curiosidade que agita seus galhos sobre mim até no meio da noite, quando bate um vento estranho e penso também na Mona Lisa.
Uma quarentena assim não há de ser nada para quem já passou por tantos perrengues. Não faz muito que uma turista russa arremessou uma caneca na direção da Mona Lisa. Acertou só o vidro à prova de balas que a protege. Antes da blindagem, num ano só, em 1956, sofreu dois ataques. Levou uma pedrada na altura da sobrancelha esquerda e meses depois um homem jogou ácido na pintura que, por sorte, respingou na parte de baixo da tela. Passou dois anos dentro de um baú, no apartamento de Vicenzo Perrugia, funcionário do Louvre que saiu do museu desrespeitosamente com a Mona Lisa dentro do macacão em 1911. Vicenzo tentou justificar o furto alegando a intenção de devolver a obra ao seu país de origem, a Itália, quando na verdade queria mesmo é faturar 95 mil dólares do governo italiano. Já enfeitou o quarto de Napoleão Bonaparte e aposentos papais no Vaticano.
Devidamente restaurada e protegida, Mona Lisa enfrenta hoje a solidão do isolamento social. Ainda não nos encontramos pessoalmente, mas consigo vê-la sem os turistas em volta, quase perdida na parede inteira que lhe foi reservada, o que a faz parecer ainda menor do que os seus acanhados 77cm x 53cm.
A jovem senhora passou dos 500 anos, já não tem mesmo brilho no sorriso e a lâmina de 13 milímetros de álamo onde recebeu incontáveis camadas de tinta óleo se mantém a custa de muita ciência e tecnologia. Seu criador, Leonardo da Vinci, um visionário que antecipou muitas das invenções e máquinas do nosso tempo, teria previsto sua madona, assim, isolada e sem ninguém a gastar horas de contemplação na vã tentativa de decifrar as nuances de seu sfumato e chiaroscuro?
Se não o coronavírus, por suposto, pandemias o pintor de Mona Lisa previu e tentou alertar governantes para os quais vendia seus serviços. Na sua multiplicidade de conhecimentos, o gênio da Renascença também foi urbanista visionário e na Milão dominada pela corte dos Sforza testemunhou a peste pouco depois da sua chegada à cidade em 1482. O físico Fritjof Capra em seu “A Ciência de Leonardo da Vinci” relata que o criador da Mona Lisa relacionou a mortandade milanesa às péssimas condições sanitárias da população e propôs a reconstrução da cidade com casas decentes e limpeza regular das ruas com jatos d’água. Fritjof resgatou anotações originais de Leonardo com a seguinte descrição: “ É necessário um rio de fluxo rápido para evitar o ar pútrido produzido pela estagnação (…) e isso será útil também para limpar a cidade regularmente quando se lhes abrirem as comportas”.
Fritjof avalia que o projeto ideal de Leonardo era muito avançado para a época porque propunha a divisão de Milão em 10 distritos de no máximo 30 mil habitantes ao longo do rio. Como um vidente, Leonardo se refere a um mal cuja descrição parece ter sido pensada para os nossos atuais dias de pandemia: “Você dispersará tão grande aglomeração de pessoas, amontoadas como um rebanho de bodes, um nas costas do outro, que enchem cada canto com seu fedor e lançam as sementes da pestilenta morte”.
É claro que Ludovico Sforza preferiu enfeitar seu palácio e não levou adiante a ideia de cidade saudável. Mas isso foi naquele tempo. Hoje, Mona Lisa está só e as noites carregam estranhos ventos.