O físico e engenheiro eletrônico paulista Rogério Cezar de Cerqueira Leite morreu aos 93 anos na madrugada deste domingo (1º). Ele foi um dos mais importantes cientistas brasileiros e diretor de alguns dos principais departamentos de pesquisa e tecnologia do país.
Cerqueira Leite foi professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial desta Folha de S.Paulo entre 1978 e 2021.
Destacou-se nos anos 1970 não só por sua relevante produção como pesquisador na área de matéria condensada, mas, sobretudo, por sua atuação constante e crítica nos grandes debates sobre as políticas brasileiras de ciência e tecnologia e de desenvolvimento industrial.
No X, o presidente Lula afirmou neste domingo (1º) que Cerqueira Leite foi um dos principais responsáveis pelo avanço da ciência e um defensor da democracia no Brasil.
“Em 93 anos de vida, deixou contribuições em tantas áreas, que seu legado continuará dando frutos e não será esquecido”, escreveu o presidente na rede social.
Ele realizou pela primeira vez no Brasil o acionamento de raios laser em 1965, no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), em São José dos Campos (SP), ao retornar dos Estados Unidos após trabalhar durante três anos como pesquisador nos Laboratórios Bell.
Sua participação foi decisiva para a criação pelo governo federal, em 1997, em Campinas (SP), do LNLS (Laboratório Nacional de Luz Síncrotron), único do gênero na América Latina. Atualmente o local está incorporado à organização social CNPEM (Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais) -também estabelecida graças à atuação do pesquisador-, que possui ainda unidades de biotecnologia, nanotecnologia e bioetanol.
Além de importantes trabalhos acadêmicos, a produção intelectual de Cerqueira Leite abrange livros e centenas de artigos na imprensa sobre assuntos como o programa nuclear brasileiro, exploração de minerais estratégicos como o nióbio e o quartzo, ensino superior, política industrial e energia. Seus textos conseguiam mesclar didatismo com erudição e, muitas vezes polêmicos, tinham críticas mordazes.
Nos últimos artigos publicados nesta Folha de S.Paulo, Cerqueira Leite se dedicou a analisar o cenário político, como a eleição de Jair Bolsonaro (PL), o negacionismo científico, mudanças climáticas e a importância das universidades para o desenvolvimento da ciência no país.
Em seu último artigo publicado no jornal, em outubro de 2023, abordou a distribuição de verbas na pesquisa acadêmica e propôs que a maior parte, 80%, fosse dedicada a projetos necessários para o desenvolvimento nacional e o restante destinado aos projetos escolhidos pelos cientistas.
Nascido em 14 de julho de 1931 em Santo Anastácio, a 589 quilômetros da capital paulista, Cerqueira Leite tinha uma formação cultural além de seu campo de atuação acadêmica -inclui história, biologia e artes, especialmente a música.
Ele esteve presente na estreia da seção Tendências/Debates, desta Folha de S.Paulo, em 22 de janeiro de 1976. Sua contribuição foi com o artigo “Tecnologia e humanismo”. No jornal, também manteve as colunas “Diapasão”, sobre música, e “Engenho e Arte”, de divulgação científica.
Defensor da autonomia nacional em tecnologias estratégicas, como a do etanol, nos últimos anos ele alertou para a necessidade de investimentos na pesquisa e na produção desse combustível como alternativa tecnológica e industrial mais rentável e segura que o pré-sal nos aspectos econômico, ambiental, social e de compatibilidade com as condições brasileiras.
Formado em engenharia eletrônica e computação em 1958 pelo ITA, fez doutorado em física da matéria condensada em 1962 na Universidade de Paris-Sorbonne, na França. Em seguida, atuou nos Laboratórios Bell, onde trabalhou com Sérgio Pereira da Silva Porto (1926-1979), seu professor no ITA e um dos primeiros a desenvolver o uso do laser na medicina brasileira.
Foi também com esse seu mestre e amigo que o jovem físico participou, no início dos anos 1960, de estudos pioneiros no Brasil sobre aplicações do chamado efeito Raman. O fenômeno consiste na variação da frequência na dispersão de raios de luz através de determinados materiais, cuja explicação em 1923 proporcionou o Prêmio Nobel de Física ao indiano Chandrasekhar Raman (1888-1970).
Na Unicamp, onde começou a lecionar em 1970, foi diretor do Instituto de Física (1971-1974) e coordenador-geral das faculdades (1975-1978). Também foi membro do Conselho Superior da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Apesar de reclamar por “não ter ido até o fim na carreira acadêmica”, Cerqueira Leite teve uma produção relevante na área de física da matéria condensada, em que foi autor de livros e de 76 artigos, a maior parte deles em periódicos estrangeiros de impacto na comunidade científica internacional.
Foi agraciado com a Cátedra da Universidade de Montréal, Canadá, em 1979, e com a Comenda da Ordem Nacional do Mérito da França, em 1980. No Brasil, recebeu a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico em 2006.
Aposentado desde 1987 da Unicamp e membro da Comissão de Energia da União Internacional de Física Pura e Aplicada (Iupap, na sigla em inglês), ele foi também editor da revista científica britânica Solid State Communications (1974-1982) e consultor de outras 20 publicações internacionais.
Nas últimas semanas, Cerqueira Leite ficou internado devido a complicações da diabetes. O cientista foi velado no cemitério Flamboyant, no bairro de Gramado, em Campinas, neste domingo. Ele deixa a esposa, três filhos e seis netos.
MAURÍCIO TUFFANI / Folhapress