A crise pela qual passa o nosso País não é mais uma mera crise econômica e social. Sem prejuízo das dificuldades da economia e dos frágeis indicativos sociais, acredito que estamos a atravessar (tomara que atravessemos) uma grande turbulência nos quesitos seriedade e credibilidade, que devem permear ações dos homens (ou mulheres) que se apresentam como líderes e estadistas. Atribuo essa carência de seriedade e credibilidade, refletida inclusive para o mundo externo, à visível mediocridade dos detentores do poder (poucos se salvam). Por certo, o enfrentamento ao fator mediocridade, encravado nas esferas de poder, não seria tão difícil se tivéssemos uma sociedade pensante e crítica.
Considerando que as chamadas redes sociais se transformaram num bom observatório acerca da reação dos cidadãos em face da conduta dos agentes e ex-agentes políticos (aprovação ou reprovação), e tendo em vista que pelas tais redes transita uma massa heterogênea de pessoas, que vai de semianalfabetos a pós graduados, me atrevo a fazer um paralelo entre a realidade, a partir da observação do comportamento dos internautas, e a ficção muito bem trabalhada no âmbito da sétima arte – o cinema.
A propósito, o cenário com o qual hoje nos deparamos faz lembrar o extraordinário filme “Muito Além do Jardim”, de 1979, protagonizado pelo lendário Peter Sellers, que interpreta o jardineiro analfabeto e totalmente ignorante “Chance”. Depois de ter sido vítima de um atropelamento, “Chance” cai nas graças do magnata que o atropelou e passa a frequentar o círculo do poder, onde suas falas, produto de sua absoluta ignorância, passam a ser consideradas geniais, causando furor na mídia e na sociedade.
Hoje, os “Chances” são muitos. Talvez não sejam acometidos pela mesma imensurável ignorância do jardineiro, mas quase que diariamente vivem emitindo opiniões, juízos de valor e notícias falsas que fazem arrepiar os cabelos dos seres humanos minimamente sensatos. São “Chances” de esquerda e “Chances” de direita, dotados de muita ignorância, mas diferentemente do personagem de Peter Sellers, que era de uma pureza angelical, são perigosos e maldosos.
Voltando o foco para as redes sociais, o que se observa é que nelas a lucidez dos interagentes parece ter sido cambiada por uma cega paixão. As bobagens ditas pelos “Chances” contemporâneos são exaltadas e festejadas. Para os fiéis seguidores dos “new Chances”, agressões verbais e manifestações preconceituosas (elitistas, machistas, homofóbicas e misóginas) são fruto da autenticidade que faltava ao homem público. Essa coisa de liturgia do cargo e diplomacia é para gente frouxa. É para engomadinho que não tem coragem de se apresentar para despachar durante o expediente com a camisa de seu time do coração. Para o mesmo grupo, a verborragia e o defeito de alfabetização do “Chance” que comanda a educação no País não passa da necessária dose de ignorância e ironia que deveria ser cultuada por todo homem público (ele é um homem do povo). Esses líderes impolutos não mentem, e a justiça é considerada corrupta e perseguidora quando neles esbarram. Assim aconteceu com aquele que se auto intitula o homem mais honesto e bem intencionado do País, que foi em busca da absolvição pelo Papa, mas está muito encrencado na justiça brasileira.
Não ousem dizer, por exemplo, para o seleto grupo de torcedores da ala da direita que o indivíduo que, dias atrás, invadiu terra indígena na região de Altamira (PA) é um “antropólogo” do fã clube dos Bolsonaros. Desde a primeira hora da notícia de sua prisão emergiu a certeza de que ele era membro de uma ONG de esquerda que, agora experimentou o rigor do governo. Nem cogitem defender a experiente jornalista da “Folha de São Paulo” que trabalhou na matéria das “fake news”, tema que é objeto de CPI no Congresso Nacional. Os “Chances” do Palácio sentenciaram impiedosamente que a moça é uma mundana. Ponto final. Não digam, tampouco, para a galera da ala esquerda que o puritano Lula e a filósofa Dilma (dois “Chances” de primeira categoria) têm qualquer envolvimento com a corrupção no governo do PT. Não confundam corrupção com a distribuição e recebimento de dividendos e bônus aos voluntariosos membros do governo e do partido. Para esse pessoal a Venezuela é um exemplo de democracia, e foi a perseguição da direita que levou o país vizinho, abonado no passado, ao caos.
O certo, enfim, é que apesar de todas as agruras pelas quais têm passado o País e o povo brasileiro, o senso crítico e a sensatez parecem ter sido subtraídos até mesmo de gente muito letrada, formadora de opinião, que diariamente se vale das redes sociais para exaltar como positivo o que é negativo; para disseminar “fake news”, e para demonstrar com todas as luzes para as pessoas que ainda conservaram o bom senso (talvez uma minoria) que ingressamos na era da mediocridade pós moderna.