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O trânsito dos embriagados (parte 2)

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Em continuidade do texto anterior trato agora das penalidades para quem conduz veículos em estado alcoolizado, embriagado e/ou usando drogas (lícitas ou ilícitas). Em uma breve retrospectiva, até 1988 o antigo Código Nacional de Trânsito (CNT) não possuía artigo de Lei específico para esta questão. Cabia então ao Código Penal de 1940 capitular o fato quando ocorresse lesão corporal ou morte. O alcoolizado, embriagado ou drogado respondia pelo resultado, na forma culposa e por negligência, imprudência ou imperícia. Após a promulgação do novo Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e sua vigência em 23 de janeiro de 1998, deu-se início a um conflito normativo que ainda não foi solucionado à contento.

Entre 1998 e 2006: havia a previsão de penalidade administrativa quando o condutor apresentasse medida igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue, sendo computado sete pontos no prontuário por infração gravíssima. No âmbito criminal, era preciso “expor a dano potencial ou a incolumidade de outrem”; significava dizer: se a embriaguez não externasse uma manobra perigosa ou uma direção em “zigue-zague” – entendidos como “dano potencial” – sequer era lavrada a ocorrência (criminal).

Novamente, o condutor respondia pelo resultado só em caso de morte (CTB, artigo 302 – detenção de dois a quatro anos e suspensão da CNH ou do direito de se habilitar) ou de lesão corporal (CTB, artigo 303 – detenção de seis meses a dois anos e suspensão da CNH ou do direito de se habilitar). A pena podia ser aumentada de 33% a 50% no caso de o condutor estar alcoolizado, embriagado ou drogado, ou no caso de não possuir CNH, avançar na calçada ou faixa de pedestre e/ou não prestar socorro ou estando no exercício de profissão/atividade, transportando passageiros.

O texto original do CTB, artigo 277, ainda permitia provar o estado de embriaguez ou de drogado por outros meios de prova. Todavia, negada submissão ao exame, o condutor autuado conseguia êxito, em processo judicial, alegando o direito de não produzir prova contra si, afastando a tipificação do ato infracional.

De 2006-2008, a Lei 11.275 incluiu, no artigo 165, multa em quíntuplo do valor base (quase R$ 1,5 mil) além da suspensão da CNH, em prazo que variava de acordo com o prontuário do infrator; permitiu a avaliação em caso de suspeita de uso de droga/entorpecente (CTB, artigo 277, § 1º) e passou a penalizar quando da RECUSA à submissão (CTB, artigo 277, § 2º) tudo no âmbito administrativo.

No âmbito criminal, bastava o perigo de dano ou dano potencial para incriminar o condutor. Todavia, a possibilidade de não submissão ao exame, pela via judicial, anulava a autuação.

De 2008 a 2012, a Lei 11.705 trouxe outro paradigma e foi popularmente chamada de LEI SECA (uma alusão ao que aconteceu em 1920, em Chicago, nos Estados Unidos, quando ficou proibido o consumo de álcool) porque passou sujeitar qualquer condutor, independente do grau ou quantidade de álcool ingerido (CTB, artigo 276). Além disso, trouxe uma exceção para quando da lesão corporal culposa, não mais nos moldes da Lei 9.099/95, artigo 74, 76 e 88 (conhecido como Juizado Especial Criminal, o Jecrim, que processa crimes de menor potencial ofensivo – CTB, artigo 291, § 1º); ainda passou presumir o estado alcoolizado, quando da recusa do teste (CTB, artigo 277, § 3º) enquadrando o condutor, automaticamente, no artigo 165.

No âmbito criminal, era preciso a medida objetiva igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue para tipificar o crime de embriagues ao volante, deixando de lado o perigo de dano ou dano potencial. Esta alteração foi a “gota d´água” para a sociedade. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar o Recurso Especial nº 1.111.566 sedimentou o entendimento de que “não é papel do intérprete-magistrado substituir a função do legislador, buscando, por meio da jurisdição, dar validade à norma que se mostra de pouca aplicação em razão da construção legislativa deficiente”.

Em palavras simples: a Lei de 2008 ainda não prestava para o fim exigido pela sociedade. Assim ocorrendo, de 2012 a 2014, por meio da Lei 12.750, o Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) passou ter a atribuição exclusiva para disciplinar as margens de tolerância dos testes (CTB, artigo 165, § único e artigo 277) bem como os meios alternativos de constatação da infração (CTB, artigo 277, § 2º) e trouxe a equivalência do exame de sangue, no caso de uso do etilômetro (bafômetro) em 0.3 miligrama de álcool por litro de ar (CTB, artigo 306, § 1º, incisos I e II) tornando literal a caracterização da infração por qualquer meio de prova admitida pela Lei Penal. Deixou de especificar substância entorpecente e passou tratar de substância psicoativa (CTB, artigo 165 e artigo 306) de forma possibilitar o enquadramento também para substância não proibida, como medicamento, mesmo mediante prescrição médica.

Mais legislação

De 2014 a 2016, a Lei 13.281 passou para dez vezes do valor base a multa por infração administrativa do CTB, artigo 165, chegando a quase R$ 3 mil, além de 12 meses de suspensão da CNH no caso da infração por estar alcoolizado, embriagado ou drogado. Ainda criou uma infração administrativa específica (CTB, artigo 165-A) por recusa da submissão aos exames que possam identificar o uso de álcool ou substância psicoativa e não mais por conta de uma presunção, como antes acontecia.

No mesmo sentido, mas como medida coercitiva, quando da condenação ou transação penal possível, passou exigir que a pena alternativa seja de prestação de serviços em unidades de resgate, atendimento médico-hospitalar, clínicas e assemelhados (CTB, artigo 312-A). A alteração mas significativa foi a previsão de RECLUSÃO de até quatro anos no caso do homicídio decorrer do uso de álcool ou drogas (CTB, artigo 306, § 2º).

Diariamente, a sociedade permanecia em choque diante das ocorrências que envolviam alcoolizados, embriagados ou drogados. Mesmo com outros meios de provas então admitidos, permanecia a situação de liberação da maioria dos condutores causadores das tragédias, com ou sem fiança, porque a Lei Penal, artigo 44, permitia e ainda permite substituir a possível e futura pena por uma ou mais medidas que restrinjam o direito do infrator (horários e locais restritos, não ausência da comarca, apresentação periódica à justiça, prestação de serviços comunitários e etc…).

Tudo porque o homicídio e a lesão corporal grave na direção de veiculo automotor, desde 1998, apenavam com DETENÇÃO de dois a quatro anos e de seis meses a três anos, respectivamente. A mudança de 2014, que previa a RECLUSÃO, não passava de quatro anos de privação da liberdade, tempo suficiente para permitir a substituição mencionada acima. Era uma questão de política criminal que não se atentou à situação cada vez mais calamitosa em relação à crescente violência do trânsito, com centenas de vítimas.

A mudança

De 2017 em diante, a Lei 13.2546 incluiu o § 3º no artigo 302 da Lei de Trânsito – e revogou o § 2º – de forma que o homicídio ao volante passou ser apenado com RECLUSÃO de cinco a oito anos. Ao mesmo tempo, incluiu o § 2º no artigo 303 de modo que a lesão corporal – grave ou gravíssima – passou ser apenada com RECLUSÃO de dois a cinco anos. Ou seja: de forma abstrata, sem existir sentença final, as novas penas só permitem a fiança por decisão Judicial e não mais da Autoridade Policial (delegado) e ainda afastam a possibilidade da substituição prevista na Lei Penal, artigo 44.

À partir de então, uma nova realidade tem sido observada em relação aos acidentes que envolvem os condutores que fazem uso de bebida alcoólica e/ou drogas, mesmo que lícitas (remédios/substâncias) e mesmo que mediante receita médica porque, havendo a dependência da substância e reações orgânicas possíveis ou conhecidas a Lei de Trânsito veda a condução de veículos.

Cabe mencionar ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF), no bojo de ações que questionam a constitucionalidade dos dispositivos da Lei de Trânsito- ADC 43, ADC 44 e ADC 54 – convocou audiência pública, no ano de 2012, para que os Ministros da Suprema Corte pudessem angariar mais elementos e informações no julgamento final que, até esta data, passados 11 anos, ainda não aconteceu.

Portanto, mesmo considerando a recente decisão do STF em relação à manutenção da liberdade enquanto não forem julgados todos os recursos, os homicídios e lesões corporais graves/gravíssimas ensejam a prisão cautelar do condutor e permite a reclusão imediata. Assim, na melhor das hipóteses, para quem nunca respondeu processo criminal e tem bons antecedentes, há grande probabilidade de cumprir ate 12 meses de reclusão, em regime fechado.

Portanto, a frase “se beber não dirija”, que também vale em relação ao uso de drogas, deve ser observada à risca para que eu, você e nossos pares tenhamos nossas vidas e nossas liberdades preservadas.