No Brasil, 85% das pessoas com obesidade relatam ter sofrido algum tipo de preconceito em relação ao seu peso, segundo levantamento feito pela Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso). Em 2013, a American Medical Association passou a considerar a obesidade como uma doença crônica. A justificativa se deu a partir da conclusão de que a obesidade é um problema complexo, urgente e que carece de melhor acolhimento, tanto dos sistemas e agentes de saúde, como da sociedade em geral.
“A obesidade foi colocada como uma doença, principalmente, para ser levada mais a sério, mas isso não tem acontecido. Ela ainda é tratada como uma questão de força de vontade. E se a gente não considerar ela como uma doença, como reivindicar que essas pessoas sejam cuidadas? É contraditório”, explica a nutricionista e pesquisadora Camila Secaf.
Camila é graduada em Nutrição pela Universidade de Ribeirão Petro (Unaerp), pós-graduada em Comportamento Alimentar pelo Instituto de Pesquisa e Gestão em Saúde (IPGS) e especialista em Nutrição Clínica pelo Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (HCRP).
Ela conta que as experiências da vida acadêmica e na prática clínica influenciaram a escolha por explorar as tensões que envolvem a obesidade em sua dissertação de mestrado, intitulada Explorando o estigma do peso: uma análise multifacetada da gordofobia e do estigma internalizado em relação ao gênero e índice de massa corporal. A pesquisa foi desenvolvida no Laboratório de Nutrição e Comportamento da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto (FFCLRP).
“Durante toda a minha trajetória, eu fiquei muito angustiada em ver o tratamento que as pessoas com obesidade recebiam na área da saúde. Muitos colegas próximos de profissão com condutas gordofóbicas e com preconceitos em relação às pessoas com obesidade. Foi quando eu decidi estudar e entender mais sobre esse assunto, que era algo em que eu tinha bastante interesse”, relata Camila.
A nutricionista confessa uma insatisfação com a função atribuída aos profissionais: “O nutricionista, hoje em dia, é visto como ‘emagrecionista’. Não é mais sobre saúde. Com isso, os tratamentos são diferenciados O profissional recebe um paciente com obesidade que traz várias queixas, mas trata tudo isso como sendo ligado ao peso. Quando você fala sobre saúde, especialmente sobre saúde para todos, é remar contra a maré”.
Com esse pensamento, Camila buscou analisar como o recorte de gênero e a própria internalização dos estigmas em relação ao peso, em indivíduos de diferentes classificações do Índice de Massa Corporal (IMC), influenciam a manifestação de preconceitos em relação a pessoas com obesidade.
“O que eu encontrei como resultado é que a gordofobia está presente em todo mundo. Independente do gênero e do peso, todos foram gordofóbicos. A gordofobia é muito forte na sociedade e tem raízes bem profundas”, disse Camila Secaf.
Estigma: construção e internalização
A palavra estigma deriva do termo em grego stigma, em referência a uma marca ou um sinal aplicado ao corpo. Hoje, a sociologia entende o estigma como uma condição que é percebida como diferente ou desviante da norma social.
Camila apresenta em seu livro Estigma do peso: conceito, consequências e ações de combate, desenvolvido durante seus estudos no núcleo de Psicobiologia da FFCLRP, que, “para alguns estudiosos, o estigma pode ser representado em características físicas e comportamentais, mas está sempre relacionado a qualidades indesejáveis e negativas”.
A visão coletiva sobre os corpos varia de acordo com os períodos históricos e contextos socioculturais. A pressão estética para se encaixar no padrão de beleza socialmente aceito é algo que afeta populações de diferentes IMCs e, hoje, se traduz na busca pela magreza.
Conforme os indivíduos crescem e adquirem novos papéis na sociedade, a busca pela adequação aos padrões sociais vigentes torna-se mais proeminente. Nesse processo, são vivenciadas experiências estigmatizantes, que, muitas vezes, acabam sendo internalizadas e reproduzidas. Com o estigma em relação ao peso não é diferente.
“A estigmatização do peso é algo amplo, que envolve atitudes, estereótipos e preconceitos. A gordofobia é uma manifestação desse estigma do peso, definida como um medo patológico à gordura, ou seja, um medo muito excessivo da gordura e de engordar”, explica a pesquisadora.
Entendendo o IMC e suas limitações
O Índice de Massa Corporal foi criado na década de 1830 pelo belga Lambert Quételet. O matemático estudava as características físicas da população e procurava elaborar uma relação entre peso e altura, mas sem nenhuma pretensão explícita de utilizar a fórmula em algum tipo de protocolo para diagnósticos na área da saúde.
O resultado da pesquisa foi o Índice de Quetelet, obtido com a divisão do peso (em quilogramas) pela altura (em metros) elevada ao quadrado.
Mais de um século depois, em 1972, o médico especialista em composição corporal Ancel Keys resgatou o Índice de Quetelet, rebatizado de Índice de Massa Corporal, como forma de padronizar o critério do peso nas avaliações médicas. A partir de 1997, a Organização Mundial da Saúde adotou o IMC como referência oficial para diagnóstico da obesidade. Para cada valor de resultado, há uma classificação.
Tabela de classificação do IMC
IMC (KG/M²) | CLASSIFICAÇÃO |
---|---|
< 18,5 | Magreza |
18,5 a 24,9 | Eutrofia |
25 a 29,9 | Pré-obesidade |
30 a 34,9 | Obesidade grau I |
35 a 35,9 | Obesidade grau II |
≥ 40 | Obesidade grau III |
Fórmula do IMC
Imagem feita por Jornal da USP
Camila explica que o IMC é muito útil quando utilizado em estudos populacionais. “Ele é fácil de aplicar, rápido e barato. Eu o utilizei na pesquisa”, conta. Entretanto, ela adiciona que o IMC funciona apenas como um marcador numérico e não deveria ser um parâmetro isolado para definir o estado de saúde de um indivíduo.
“Muitos usam o IMC como critério para diagnóstico da obesidade, sem considerar outros parâmetros, mas ele não é suficiente. O ideal seria considerar vários marcadores, como peso, relação com o próprio peso e com a comida, histórico de saúde, exames bioquímicos e avaliação antropométrica. Mas nada disso isolado”, defende.
O cálculo do IMC possui limitações, pois não apresenta recortes quanto a idade, sexo, identidade étnico-racial, composição corporal e localização da gordura. O índice não costuma ser aplicado a menores de 18 ou maiores de 60 anos. Os corpos de crianças, adolescentes e idosos passam por processos biológicos que influenciam diretamente na proporção avaliada, como crescimento acelerado na juventude e porosidade óssea e/ou sarcopenia na velhice.
O cálculo também não leva em consideração a porcentagem de massa muscular, gordura e ossos que, somados, compõem o peso total. Como os músculos são mais densos que a gordura (ou seja, o mesmo peso dos dois tecidos ocupa um volume espacial diferente), uma pessoa muito musculosa poderia, por exemplo, ser classificada com IMC de risco.
A classificação foi elaborada tendo como base uma amostra demográfica restrita à população branca europeia. Diferentes características genéticas e estilos de vida das populações afetam fatores como a atividade metabólica e biotipo corporal. Armazenar gordura sob a pele é diferente de armazenar gordura próximo aos órgãos vitais: a gordura visceral apresenta muito mais riscos à saúde do que a subcutânea.
Imagem e avaliação
A pesquisa contou com a participação de 468 pessoas, entre 18 e 60 anos, exceto fisiculturistas e pacientes submetidos à cirurgia bariátrica (por conta da distorção do IMC). A amostra foi recrutada na sala de espera de duas unidades de saúde.
Quem aceitava participar da pesquisa, respondia, primeiramente, a um questionário sociodemográfico, com informações sobre gênero, peso, estatura, renda, nível de escolaridade, orientação sexual e frequência de atividade física.
Após o questionário, os participantes respondiam a uma escala de estigma do peso internalizado. “Essa escala é para identificar discursos como ‘eu acredito que pessoas com obesidade devem ser amadas, devem receber oportunidades de emprego e tudo isso. Mas, quando é comigo, eu acredito que isso não vai valer. Se eu engordar, não merecerei isso’. São estereótipos mais relacionados a si”, explica Camila.
Posteriormente, era apresentada uma escala de gordofobia referente a imagens de homens e mulheres, com e sem obesidade. Dentre 14 adjetivos antônimos, o participante deveria indicar qual deles se enquadrava melhor para descrever a pessoa da foto. “Eram classificações como lento ou rápido, e trabalhador ou preguiçoso. Também era preciso indicar o quão próximo do adjetivo a pessoa da foto era”, complementa.
A pesquisadora diz que a opção por usar estímulos fotográficos foi baseada em outros estudos da área. “Mas, a maioria dos estudos mostra só a parte de baixo do corpo da pessoa, sem o rosto. Isso também é uma forma de estigmatização. Em campanhas publicitárias de combate à obesidade, a gente costuma ver um corpo sem rosto ou, quando há um rosto, ele carrega uma expressão triste”, exemplifica.
Entretanto, Camila menciona que existem bancos de fotos elaborados por organizações que tentam combater a representação estigmatizada de pessoas com obesidade nas mídias, como os sites Obesity Canadá e Obesity Action Coalition.
“A ideia era pegar uma dessas fotografias da internet, só que como eu precisava de um estímulo com e sem obesidade, não teria um padrão em relação às fotografias: era preciso fotografar os modelos com as mesmas roupas, nos mesmos cenários, sob o mesmo ângulo; tudo para ter menos interferências de estímulos externos. Então tiramos as fotos dessas pessoas como um estímulo real, mostrando o rosto e de uma forma não estigmatizada”.
Ao final do trabalho, foi feita uma análise multivariada para relacionar diferentes grupos às respostas apresentadas no questionário.
Resultados
Na dissertação, Camila justifica que um dos motivos do recorte pelo gênero e pela classificação do IMC é a falta de consenso na literatura sobre a influência desses aspectos no estigma do peso internalizado e na gordofobia, sofrida ou praticada.
“Eu imaginei que os homens seriam mais gordofóbicos do que as mulheres, levando em conta as normas sociais em relação ao gênero. Também pensei que as pessoas eutróficas seriam mais gordofóbicas do que as pessoas com obesidade”, afirma a pesquisadora se referindo a pessoas com estado nutricional considerado adequado e saudável. “Porque existem vários estudos que demonstram que pessoas com obesidade sentem mais empatia por pessoas que estão na mesma situação. Mas o que eu encontrei foi que homens e mulheres são gordofóbicos de maneira semelhante, independente do peso deles”, completa.
Em relação às fotos veiculadas, ela apresenta que as imagens das pesoas com obesidade foram mais estigmatizadas, independentemente do gênero: tanto homem como mulher foram estigmatizados de maneira semelhante.
A pesquisadora menciona a importância de abordar o estigma do peso como uma questão de desigualdade social e, portanto, de incluir esse grupo nas pautas para elaboração de políticas públicas. A acessibilidade para o corpo gordo e a preocupação com os impactos do estigma em relação ao peso na saúde física e mental dos indivíduos são exemplos de uma abordagem mais inclusiva.
Camila reforça que é preciso rever a abordagem dos profissionais de saúde ao lidar com pacientes com sobrepeso: “A obesidade deve ser vista como uma doença crônica e tratada como tal. Muitas pessoas olham o IMC associado à obesidade e projetam um caminho para a eutrofia, mas não necessariamente. Hoje, já se sabe que não existe um peso ideal a ser almejado pela pessoa com obesidade. Até porque, mais do que o peso perdido, uma avaliação saudável seria a perda e manutenção do peso”.
A nutricionista também celebra a existência de movimentos que promovem a inclusão e auto-aceitação, principalmente nos meios digitais. Ela menciona o movimento Corpo Livre, da jornalista e ativista Alexandra Gurgel, e perfis na plataforma Instagram, como o Saúde sem Gordofobia, criado para indicar profissionais que não são gordofóbicos, a Nutri Desconstruída e o Nutricionista Gordo.
“As pessoas usam as redes sociais num sentido de querer mostrar que elas têm direito de expor seu corpo, de ser amada, de ocupar o espaço, de dançar, de se expressar. É importante falar sobre isso. São passos pequenos”, pontua Camila.
**Texto de Jornal da USP