O Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) incluiu a militarização das escolas como uma forma de ameaça ao direito de ensino e aprendizado. Em documento publicado em maio, o órgão classificou a medida como uma violação da liberdade e autonomia acadêmica.
O STF (Supremo Tribunal Federal) inicia nesta sexta-feira (6) o julgamento em plenário sobre a implantação do programa de escolas cívico-militares na rede estadual de São Paulo. Na semana passada, o ministro Gilmar Mendes atendeu a recurso do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e derrubou a decisão do Tribunal de Justiça que havia suspendido a política.
Gilmar, que é relator do caso, submeteu a decisão à análise do plenário. A sessão é virtual.
Criado na década de 1990 em Goiás, o modelo de escolas cívico-militares se tornou política pública nacional durante o governo Jair Bolsonaro. Em 2023, o presidente Lula (PT) determinou o fim do programa, mas a proposta já havia se tornado uma bandeira de políticos e se espalhou por estados e municípios com leis locais para instituir a modalidade.
Um levantamento feito pela Repme (Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação mostra que, em 2013, o país tinha 39 escolas estaduais geridas por policiais militares em 14 unidades da federação. No ano passado, esse número saltou para 816 unidades estaduais e municipais.
Um dos questionamentos sobre a constitucionalidade e legalidade das escolas cívico-militares é se o modelo fere o direito da liberdade de ensinar e aprender.
Para o Conselho de Direitos Humanos da ONU, não há dúvida de que a militarização de escolas é incompatível com a liberdade acadêmica, imprescindível para sistemas democráticos.
“Os Estados e os líderes educativos devem garantir a segurança e a integridade das instituições e das pessoas educativas, ao mesmo tempo que se abstêm da militarização, da vigilância ou de outras medidas que prejudiquem a liberdade e a autonomia acadêmicas”, diz o documento do conselho, que foi apresentado em maio durante sessão do órgão.
O documento foi elaborado por um grupo de trabalho sobre liberdade acadêmica, com especialistas de todo o mundo. Segundo o órgão, a iniciativa tem como objetivo fortalecer os mecanismos de supervisão e proteção da liberdade acadêmica em todos os estados membros da organização -o Brasil é membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
O entendimento de que o modelo é incompatível com a Constituição brasileira, além de outras leis como a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), uniu o campo educacional contra a militarização das escolas. Entidades sindicais, estudantis, acadêmicas e até mesmo empresariais se manifestaram contra o modelo.
“Há uma unidade na contrariedade ao modelo porque ele não é compatível com a perspectiva de educação que foi definida pela Constituição Federal. Por isso, as entidades que trabalham pela educação, que defendem a educação pública e de qualidade, estão em acordo contra o modelo”, avalia Salomão Ximenes, professor de políticas públicas da UFABC.
No último dia 22 de novembro, quando o STF fez uma consulta pública sobre o tema, representantes de entidades sindicais, estudantis, acadêmicas e de órgãos públicos, como a Defensoria Pública e AGU (Advocacia-Geral da União), expuseram argumentos contrários ao modelo.
A favor das escolas cívico-militares estavam representantes ligados aos militares, integrantes das secretarias de educação que já implementaram o modelo e políticos, como os deputados coronel Henrique (PL-MG) e tenente Coimbra (PL-SP).
“Depois que o presidente Lula extinguiu o programa nacional, o debate sobre esse modelo se espalhou pelo país e foram sendo criados projetos diferentes. Mas todos eles passam pelos mesmos problemas: pagam valores maiores para os militares do que para os professores, não exigem formação adequada desses agentes para atuar em sala de aula”, diz Ivan Gontijo, gerente de políticas educacionais do Todos pela Educação.
Ele destaca ainda que há uma demanda de parte da população por esse modelo, mas afirma que essa defesa pode estar associada à falta de informação sobre a proposta.
Segundo a pesquisa “A cara da democracia”, feita pelo Instituto da Democracia, que reúne especialistas de UFMG, Unicamp, UnB e Uerj, 60% dos brasileiros apoiam a militarização das escolas e 30% são contra. O levantamento, porém, não diferencia o modelo militar do cívico-militar — o primeiro é direcionado a filhos de militares e tem professores e regras militares, além de processos seletivos; no outro, os militares atuam em funções não pedagógicas, como a inspetoria.
O programa paulista, por exemplo, prevê a contratação de policiais militares da reserva para atuar em projetos extracurriculares que vão abordar assuntos como direitos e deveres do cidadão e civismo, além de cuidar da segurança escolar. As aulas continuariam a cargo de docentes da rede estadual.
“Há muita confusão sobre esses dois modelos. As escolas militares, mantidas pelas Forças Armadas, recebem muito mais recursos financeiros, fazem processo seletivo. Isso já garante resultados maiores. As escolas cívico-militares não recebem tudo isso”, destaca Gontijo.
Entenda o julgamento
Em agosto, o desembargador Luiz Antonio Figueiredo Gonçalves, do Tribunal de Justiça de São Paulo, suspendeu a lei que implantava o modelo em uma ação apresentada pela Apeoesp, o principal de sindicato dos professores da rede estadual. Na decisão liminar (provisória), no entanto, o magistrado não analisou a constitucionalidade da norma paulista e determinou a suspensão até que o Supremo julgasse o tema.
Gilmar Mendes, por sua vez, entendeu que a Justiça paulista invadiu a competência do STF ao decidir sobre o assunto. A lei que instituiu as escolas cívico-militares é questionada no Supremo pelo PSOL.
O ponto considerado inconstitucional por aqueles que criticam a medida é o de que a militarização de uma escola civil não está prevista na LDB ou em qualquer outra legislação federal. Por isso, estados e municípios não teriam autonomia para criar seus próprios modelos.
Na audiência pública no STF que discutiu o tema, o secretário-executivo de Educação de SP, Vinícius Neiva, disse que o programa trabalha com a ideia de dar o direito de escolha das escolas aos pais, permitindo uma adesão voluntária. “Quando a gente fala em gestão democrática, ela tem que valer inclusive para aquela parte da população que tem uma opinião divergente da nossa e permitir que as pessoas que queiram esse modelo possam ter seus filhos matriculados”, disse.
Segundo a pasta, cerca de 300 escolas estaduais manifestaram interesse no programa. Isso representa cerca de 4% dos mais de 5.000 colégios estaduais paulistas. O governo vai selecionar 45 deles.
ISABELA PALHARES / Folhapress