Ora Bolhas

Bolhas sempre existiram. Nas telas e na vida.

Rembrandt van Rijn foi um artista holandês que pintava seus quadros quase sempre por encomendas. Trabalhou no século XVII, na era de ouro dos Países Baixos (a atual Holanda e parte da Bélgica de hoje). A prosperidade econômica da pequena região refletia-se na cultura, e fez nascer aos poucos uma crescente burguesia, homens poderosos que não tinham título mas tinham dinheiro, e muita vontade de alcançar reconhecimento social. Uma das formas de aparecer bem era encomendar quadros de grandes pintores, imitando os hábitos e valores da nobreza, buscando entrar cada vez mais num círculo fechado, antes inacessível.

Na tela acima, vemos Cupido com bolha de sabão, simbolizando um contraste entre a ilusão do amor, Cupido, que nos parece puro e cheio de vida enquanto amamos, e sua realidade, que é ser efêmero como uma bolha de sabão, que por mais linda e iridescente que seja, se desfaz em poucos segundos, explodindo sozinha ou ao contato com outra superfície.

Hoje está na moda falar de bolhas. Desde que o ativista americano Eli Pariser, de orientação progressista, publicou o livro  The Filter Bubble, em 2011, o termo passou a ser utilizado no cotidiano para significar a prisão intelectual em que a maioria dos homens se encontra neste início de milênio, fruto de uma nova relação entre publicidade e consumo, mediada pela era digital.

De fato, na internet somos hoje minuciosamente controlados por algoritmos que coletam e organizam os big data, numa espécie de inteligência artificial. Esses programas monitoram nossa localização, guardam por onde navegamos nos sites, as lojas em que entramos, o que consumimos, e até marcam o tempo que gastamos online lendo que assuntos e vendo que vídeos. Todas as nossas pesquisas, visualizações, likes e inscrições alimentam a venda de espaço publicitário direcionado e a monetização dos produtores de conteúdo.

A intenção maior atual  é que as redes sociais e a propaganda possam se antecipar aos desejos e interesses do usuário e oferecer aquilo que ele já quer, em todos os temas, sejam eles do campo comercial, político, musical, cultural ou profissional.

Se alguém fizer uma pesquisa no Google, por exemplo, utilizando o computador de outra pessoa, vai receber respostas diferentes das que receberia se a pesquisa fosse digitada no seu próprio notebook. Teste você mesmo. Entre no Youtube pelo celular de um amigo: de cara, pelas sugestões de vídeo que ali aparecem,  você vai saber o que ele gosta de ver quando está só.

São os filtros, são as chamadas bolhas.

Mas na verdade esses isolamentos em grupos  afins sempre foram marca de tensão social, visível às vezes, outras vezes nem tanto. Fosse um romano antigo, ou um francês medieval, todos tinham sua cosmovisão filtrada pela classe social a que pertenciam. Ontem foi, e ainda hoje é, difícil pensar fora da bolha que nos envolve, embora a tal bolhinha pareça sempre ser muito clara e transparente.

É raro chegar a ter consciência de que o conhecimento vai além das verdades que enxergamos e que nossa vontade aceita. Isso traz insegurança. Se acredito que a Terra é plana, ou que Maomé é o maior profeta, não quero nem ouvir quem diga o contrário. Quero argumentos que reforcem minhas convicções. A última coisa que me interessa é que abalem minhas crenças, que me deixem sem chão. A fragilidade da bolha é uma mentira. A bolha de sabão é sólida. É sólida. É sólida, sim. E pronto!

Mas há uma diferença positiva da era digital em relação ao passado. O homem de hoje não precisa encomendar quadros caros, de pintores famosos, para sair de sua bolha. Basta clicar do outro lado, tão fácil quanto levantar a cabeça. Os algoritmos são estradas muito bem construídas, mas é você quem escolhe as direções e alimenta as máquinas.

No quadro de Rembrandt, Cupido assopra uma bolha de sabão apoiando-a numa concha. As nossas bolhas são também assim. Resistentes. Dificilmente espocam de forma espontânea. Para rompê-las, é preciso muito esforço e alguma vontade de nossa parte.

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