Home Notícias Cotidiano Pandemia do Coronavírus (COVID-19) e o Direito do Idoso

Pandemia do Coronavírus (COVID-19) e o Direito do Idoso

0
Pandemia do Coronavírus (COVID-19) e o Direito do Idoso
Advogada, é graduada em Tecnologia em Processamento de Dados, especialista em Direito Civil e Processual Civil e pós-graduanda em Políticas Públicas e Sociais do Idoso.

A pandemia do coronavírus e o consequente estado de vigília em todo o mundo fizeram surgir uma variedade de casos relativos as várias áreas do Direito.

Mas, afinal, o que é uma pandemia? A definição de pandemia não depende de um número específico de casos. Considera-se que uma doença infecciosa atingiu esse patamar quando afeta grande número de pessoas espalhadas pelo mundo.

Estamos presenciando um momento de tensão e crise mundial diante da decretação de pandemia do novo coronavírus (Covid-19) pela Organização Mundial de Saúde. Fechamento de fronteiras, esgotamento de produtos básicos em gôndolas de supermercados, inexistência de leitos hospitalares, principalmente para atender grande número de pessoas que serão diagnosticadas com a doença e crise na economia mundial são um dos efeitos facilmente evidenciados e noticiados pela mídia em geral.

Em momentos de tanta incerteza, a única afirmação possível de ser feita é que estamos vivendo uma situação sem precedentes em nossa era, muitas vezes acentuada pelo maior acesso à tecnologia e compartilhamento de informações em escala mundial, informações que nem sempre são confiáveis, ocasionando pânico na população.

Em meio a tudo isso, os idosos são considerados como um dos grupos de risco ao adquirir a doença, passando a demandar uma resposta médica efetiva para evitar situações de letalidade.
Não é novidade que os leitos hospitalares são escassos, principalmente em um quadro de pandemia. Faltam testes, leitos, respiradores, enfermeiros, tudo o que é indispensável ao tratamento intensivo exigido pela mortal doença. E a situação não é muito diferente na saúde explorada lucrativamente por particulares.

Em muitos casos, os profissionais da área de saúde precisam fazer a escolha de quem irá ser atendido primeiro, em detrimento do outro. A isso a literatura chama de mistanásia.

A palavra mistanásia advém do vocábulo grego mis (infeliz) e thanatos (morte), significando, portanto, uma morte infeliz. O termo é utilizado para se referir à morte de pessoas que, excluídas socialmente, acabam morrendo sem qualquer ou apenas uma precária assistência de saúde. Assim, podemos afirmar que as vítimas da mistanásia são as pessoas que não dispõem de condições financeiras para arcar com os custos advindos dos tratamentos da própria saúde, ficando na dependência da prestação de assistência pública.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, caput, traz a inviolabilidade da vida como um dos direitos fundamentais do ser humano, garantindo-se a todos a igualdade perante a lei, sem qualquer distinção.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Assim, conscientes de que a vida é o maior bem que o ser humano pode ter, razão pela qual a Constituição Federal ressalta sua inviolabilidade, o nosso ordenamento jurídico fixou diversas formas de proteção e garantia à vida desde o momento de sua concepção, como observamos no âmbito penal com a proibição do aborto, ou mesmo no âmbito civil, garantindo-se ao nascituro os alimentos gravídicos.

Não obstante a vida ser considerada um valor supremo em nossa sociedade, não se pode ignorar que, assim como ela recebe no nascimento a proteção das mais variadas formas em respeito à dignidade do ser humano, a morte igualmente merece a devida tutela, sendo necessária a distinção de termos que parecem semelhantes, mas refletem situações concretas bem distintas a respeito da morte.

A eutanásia, prática vedada pelo ordenamento pátrio, consiste na realização de atos para abreviar a vida de uma pessoa com uma enfermidade incurável. Tal prática é considerada no Brasil como homicídio, na esfera criminal, sendo também expressamente vedada no âmbito do Conselho Federal de Medicina.

Diferentemente de abreviar a vida de um paciente, poderá o médico oferecer todos os cuidados paliativos ao necessário conforto a quem padece de doença incurável, amenizando o sofrimento na evolução natural de uma patologia irreversível, o que redunda na denominada ortotanásia.
De outra sorte, a distanásia apresenta-se como uma situação inversa da encontrada na ortotanásia, sendo inclusive vedada, pois se caracteriza pelo prolongamento excessivo da vida de pessoas que se encontram em processo de morte, ferindo a dignidade dos pacientes e daqueles que com ele também sofrem, em geral, seus familiares.

Sobre a mistanásia, é possível afirmarmos que há três categorias diferentes a serem consideradas. A primeira refere-se à massa de doentes que, por motivos políticos, sociais e econômicos, sequer chegam a ser pacientes pois não conseguem ingressar no sistema de atendimento médico; a segunda reflete a realidade dos que, apesar de se tornarem pacientes, são vítimas de erro médico e a terceira diz respeito aos pacientes que acabam sendo vítimas de más práticas por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos.

A Constituição da República Federativa do Brasil prevê, em seu art. 196, caput, que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”, estabelecendo, outrossim, que o acesso à saúde deve ser universal e igualitário.

Ocorre que, em que pese a norma constitucional estabelecer de forma expressa o direito à saúde e a facilitação de seu acesso a todos os indivíduos, não raras vezes, observamos a inauguração de hospitais sem o mínimo de infraestrutura para a demanda exposta, a existência de elevado número de profissionais da saúde mal remunerados e com sobrecarga de trabalho, a ausência de leitos para cidadãos que aguardam atendimento nos hospitais públicos, além dos incontáveis pleitos de liminares judiciais a fim de que haja uma mínima tutela à vida, exemplos da omissão estatal em uma área fundamental, a saúde.

De fato, a mistanásia consiste em uma das piores modalidades do processo que envolve a morte, já que ocorre por abandono, descaso e desamparo. Seria, assim, uma negação da cidadania à pessoa e não se fundamenta no direito à morte digna, esta sim tão privilegiada no atual cenário. Negar atendimento hospitalar a qualquer pessoa apenas em razão da sua idade (ser maior de 80 anos), abala seriamente uma série de direitos fundamentais inerentes ao ser humano, como o direito à vida, além de ser desproporcional e violar o princípio maior da dignidade da pessoa humana.

Se os idosos estão especialmente incluídos no grupo de risco (inclusive com maiores índices de letalidade), não se encontra qualquer proporcionalidade a negativa de atendimento para esse segmento social apenas com fundamento na idade. Afinal, são eles que, ao menos em tese, mais precisam de atendimento hospitalar e o pensamento de que “em breve irá morrer” é preconceituoso e foge à toda evolução nos direitos humanos dos idosos. Portanto, o fato de já terem mais idade não significa que terão uma vida com menos dignidade. Muito pelo contrário.
Assim sendo, eventual mistanásia não pode se fundar em categoria de pessoas ainda mais vulneráveis em um cenário de pandemia mundial. Caso seja necessário, que se baseie em critérios de emergência médica e não acentuando ainda mais vulnerabilidades de segmentos sociais específicos.

Estejam todos certos de que a verdade, o respeito e a dignidade são bens mais preciosos ao idoso do que qualquer suposta prioridade no tratamento da referida doença.
O que se espera, no final, é que as forças da natureza protejam o planeta e as novas gerações e que essa tragédia do novo coronavírus transforme os seres humanos em seres mais humanos.