A virada do século trouxe diversos avanços para Ribeirão Preto. Entre eles, o primeiro transplante de fígado que aconteceu em maio de 2001, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Essa história, que começou há 20 anos, consagrou a região como um ponto de referência no tratamento de doenças hepáticas.
A iniciativa começou com o cirurgião hepatologista Orlando de Castro e Silva Junior, professor hoje aposentado do HCFMRP. Ele conta que a primeira equipe contou com cerca de 40 profissionais da saúde, entre cirurgiões clínicos, anestesistas, enfermeiras e auxiliares de enfermagem e laboratoristas. Diz que, “havia uma grande expectativa do início do programa de transplante de fígado como verdadeiro desafio institucional, pois garantir a vida de um homem pela troca de um fígado, insuficiente, por outro sadio, extraído de outro homem, representa um dos maiores avanços da medicina”.
A cirurgia do doador começou às 20h de 1º de maio, na Unidade de Emergência do Hospital, e a do receptor foi marcada para acontecer às 2h da madrugada do dia seguinte, mas um problema aconteceu no meio do percurso. Silva Júnior conta que havia acabado de chegar de um congresso no Espírito Santo, quando recebeu uma ligação: “o celular tocou e do outro lado da linha a funcionária do hospital me deu uma notícia, ‘professor, o ar condicionado do centro cirúrgico parou de funcionar. Teremos que cancelar o transplante’”.
“Minha resposta foi imediata”, conta o cirurgião, “não vamos cancelar. Esse transplante precisa sair”. De acordo com Silva Júnior, foram anos de preparação, a partir de um estudo que começou em meados da década de 1980 conduzido pelo cirurgião hepatologista Orlando em parceria com a clínica hepatologista Ana de Lourdes Candolo Martinelli – também da FMRP – e por isso, “a região de Ribeirão Preto e as cidades vizinhas, que tinham o HC como referência para atendimento assistencial médico, não podiam ficar à margem de um processo necessário para tratamento com possibilidade de cura para doença hepática terminal, mundialmente realizado, com bons resultados”.
De acordo com o médico, o transplante de fígado tinha o potencial de dar ao HC o status de ponto de referência no tratamento de doenças hepáticas, e foi pela importância desse momento que não desistiu. Conta que o reparo do ar condicionado da sala de cirurgia foi feito antes da 00h00, quando os anestesistas começaram a preparar o paciente que receberia o novo órgão, “e assim se deu, o reparo foi feito e a cirurgia teve início às 2h45, como planejado”, conta Silva Junior.
Serviço de referência
Atualmente a Unidade de Transplante de Fígado do HCFMRP conta com cerca de 521 transplantes de fígado realizados, 50 somente no ano passado. Com capacidade para realizar cerca de 40 transplantes hepáticos por ano, o serviço consagrou “o HC de Ribeirão como referência para atendimento de toda e qualquer doença hepática clínica ou cirúrgica”, conta o hepatologista Silva Junior.
Para o cirurgião, a realização dos transplantes não é apenas uma demonstração da estrutura institucional do hospital, mas “da vontade inabalável de pessoas e a riqueza organizacional do nosso Sistema Único de Saúde (SUS)”, pois “democraticamente, todo cidadão brasileiro tem acesso gratuito ao transplante de fígado. Nada mais é, que um dever do Estado e um direito do cidadão”.
Com os avanços da ciência em todo o mundo, hoje uma cirurgia de transplante de fígado pode durar de 6h a 7h, disse o professor Ajith Kumar Sankarankutty, do Departamento de Cirurgia e Anatomia da FMRP, em entrevista ao programa Alto Astral, do Grupo Thathi. Disse que, além da diminuição no tempo de realização do procedimento, que antes era de cerca de 12h, surgiram conhecimentos que possibilitaram otimizar o atendimento ao paciente.
“Apesar da complexidade, os cuidados e a equipe estão tão bem preparados que funciona muito bem”, afirmou, “agora somos um time maior, portanto conseguimos fazer o procedimento de forma mais segura”. Após a realização de uma cirurgia hepática, os médicos ainda se preocupam com possíveis sangramentos, infecções ou rejeições, mas Sankarankutty garante que “apesar disso, os pacientes se recuperam bem, mesmo com um grande corte na barriga”.
Pandemia
Sankarankutty afirma que o Brasil está entre os países que mais realizam transplantes de órgãos no mundo. De acordo com o Ministério da Saúde, cerca de 96% dos procedimentos são custeados pelo SUS. Apesar do avanço, o médico conta que os programas sentiram o impacto da pandemia. “Recebemos notícias de equipes de todo o Estado de São Paulo que chegaram a ficar 15 dias sem realizar um procedimento, isso não é comum”.
Ainda de acordo com o professor, mesmo liderando a lista de países transplantadores, ainda existe a desigualdade no Brasil. Conta que existem regiões que não têm acesso aos centros de transplante, enquanto outras, como São Paulo, por exemplo, possuem grande concentração. “A gente precisa tornar isso acessível a toda a população brasileira, a conscientização da população é fundamental para tornar a doação mais efetiva”, afirma.
Para o hepatologista Silva Junior, o transplante de órgãos é um ato de “cuidar de um indivíduo que está mal e devolvê-lo à sociedade em condições de fazer tudo o que uma pessoa, que não tem doença hepática, faz. Afirma que “é indescritível estar andando, por exemplo no Shopping, e um paciente que você tratou chegar para lhe abraçar. Não tem palavras”.