Em março deste ano, o Instituto Limite e a Secretaria Municipal de Assistência Social divulgaram um documento, chamado “Diagnóstico Situacional de Ribeirão Preto sobre a Questão da População em Situação de Rua” que, como o próprio nome adianta, apresenta uma radiografia a respeito do perfil dos moradores de rua no município.
Dois pontos chamam a atenção para esse documento: o primeiro foi a forma como a coleta de dados – feita através de diversas abordagens a cidadãos em situação de rua –, utilizada para apresentar propostas efetivas (ou políticas sociais) que podem alterar essa situação. Foi uma iniciativa de fôlego baseada na recolha de informações sobre um determinado problema com a apresentação de soluções, a partir dos dados colhidos.
O segundo ponto, que passou inexplicavelmente despercebido, diz respeito a uma situação assustadora: de acordo com informações do diagnóstico, Ribeirão Preto tem cerca de duas mil crianças e adolescentes, na faixa dos 9 aos 17 anos, envolvidas, direta ou indiretamente, com o tráfico de drogas.
São meninos e meninas “…em atividade de sobrevivência e geração de renda via exploração do trabalho Infanto-juvenil, por meio do aliciamento, cooptação, envolvidos com atividades ilícitas ao tráfico de drogas e outras afins ou a estas associadas, sem necessariamente todos entregues ao consumo, uso e abuso de substâncias psicoativas em função de tal envolvimento.”, relata o documento na sua página 8.
Hoje, no início de setembro, nada mudou, nem foram tomada ações que, pelo menos, indicassem algum tipo de boa vontade, por parte do Poder Público e de instituições como Ministério Público, polícias Militar ou Civil e entidades do Terceiro Setor, que visassem não a solução do problema, mas uma compreensão mais correta e abrangente do problema.
Para se ter uma ideia do que representam duas mil crianças e adolescentes envolvidos com o tráfico de drogas, de acordo com dados da Fundação Seade (portal de estatísticas do Estado de São Paulo), o município de Ribeirão Preto, em 2018, tinha pouco mais de 79 mil pessoas com idades entre 10 e 19 anos. Ou seja, 2,5% desses meninos e meninas, os tais dois mil citados no diagnóstico, estão nas mãos do tráfico.
Não é pouca coisa, levando-se em conta que o número do Seade pode ser menor, uma vez que a estimativa feita pelo Instituto Limite leva em conta a faixa etária que começa com 9 anos e termina com 17, o que não se encontra disponível nem no Seade nem no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Além disso, a faixa dos 18 aos 19 anos, legalmente, não permite identificar esses cidadãos como menores, ou seja, com uma população menor nessa faixa etária, o percentual, necessariamente, passa dos 2,5%.
Para Izaías Cruz de Oliveira, gestor Institucional e de Projetos do Instituto Limite, a principal causa dessa situação está em uma mistura perversa de ausência de políticas sociais somada à falta de coordenação dos trabalhos entre os diversos atores envolvidos com as questões sociais, como Prefeitura, ONGs, Ministério Público, Poder Judiciário e polícias.
“Não há políticas para resolver a situação, ninguém faz o enfrentamento, ninguém enxerga. A criança e o adolescente que está no tráfico de drogas só é vista como um adolescente em conflito com a lei, como adolescente envolvido no tráfico, ou seja, cometendo um ato infracional. Não se busca o porquê de ele estar lá. Porque isso, além de tudo, é trabalho infantil. A OIT (Organização Internacional do Trabalho) reconhece como trabalho infantil o tráfico de drogas como a segunda espécie mais perversa para criança e adolescente. Então, por que nas cidades não se faz nada? Por que que nós, da sociedade, não assumimos [que é trabalho infantil]? Por que eu só olho o menino de 9 anos traficando, mas ninguém quer saber da história dele, ninguém sabe se o pai ou a mãe são coniventes? Se o menino de 9 anos está traficando e a mãe ou o pai são coniventes, quem é o verdadeiro bandido?”, pergunta.
São boas perguntas, mais complexas do que parecem. Sobretudo porque fogem do lugar-comum que temos no Brasil de achar que só o Poder Público é responsável por problemas e suas soluções. Sem dúvida que, no caso de Ribeirão Preto e demais 5.569 municípios do país, a administração municipal tem a sua parcela de responsabilidade, mas os outros atores a que ele se refere também a têm.
Ministério Público e o Poder Judiciário em geral, as polícias, as ONGs de caráter assistencialista, eu e você, temos de sair da confortável posição de só criticar e cobrar para começar a agir mais como parceiros desse mesmo Poder Público e apresentar propostas concretas que possam lidar corretamente com o problema.
Sobretudo, temos de aproveitar a existência de documentos como o diagnóstico produzido pelo Instituto Limite e a Secretaria Municipal de Assistência Social para, a partir dele, formular ações de curto, médio e longo prazos, que permitam recuperar essas duas mil crianças que estão nas mãos do tráfico em Ribeirão Preto.
O segundo passo é agir de forma conjunta e coordenada. Sem que todas os atores tenham consciência da dimensão do problema e concordem em agir na mesma direção essas duas mil meninas e meninos, em cinco ou dez anos, serão quatro ou cinco mil.
A saída mais conhecida para evitar que isso aconteça não está na construção de mais unidades de Fundações Casas. Está na oferta de mais e melhores escolas para essas crianças, que propiciem não apenas educação de qualidade durante o horário de aulas, mas que possam ser usadas como locais de produção e fruição de cultura, de esportes e de inovação. Criança ocupada, instruída e feliz, com toda a certeza, não cai nas mãos do tráfico.
Para que isso aconteça não são precisos milhões de reais. Basta bom senso, boa vontade e a intenção inequívoca de todos os parceiros envolvidos com a questão da criança e adolescente de trabalharem juntos. Esses meninos e meninas de hoje agradecem e a cidade, nos próximos anos, também.