Trabalho na ponta dos pés: o que significa ser uma jogadora de futebol profissional no Brasil?

Tese de doutorado premiada analisou as relações de trabalho das mulheres no futebol entre 1983 e 2023

Foto: Agência Brasil

Em setembro de 2017, Emily Lima, primeira mulher a ocupar o cargo de técnica da seleção brasileira de futebol feminino foi demitida de forma abrupta, com menos de um ano no cargo. O episódio levou Fernanda Haag, historiadora que desenvolve pesquisas sobre futebol desde a sua graduação, a estudar a relação entre trabalho e futebol para as mulheres no Brasil. Na época, a pesquisadora cursava a disciplina Gênero e Trabalho: Desafios Nacionais, Debates Internacionais, ministrada pelas professoras Nadya Guimarães e Helena Hirata, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

“A Emily Lima foi demitida com um tempo de trabalho muito curto e ela não estava tendo resultados ruins. Isso gerou muita discussão no mundo do futebol feminino e eu passei a olhar para esse tema com mais atenção. Decidi pensar as relações de trabalho e a profissionalização do futebol de mulheres no Brasil a partir do caso da Emily, e isso virou uma chave na minha cabeça. Mudei completamente a tese e comecei a estudar o futebol de mulheres”, conta a pesquisadora.

Em 2024, sua tese de doutorado recebeu menção honrosa na quarta edição do Prêmio de Teses Ecléa Bosi, da Associação Brasileira de História Oral. Intitulado “O futebol não foi profissional comigo, mas eu fui com ele”: o futebol como trabalho para as mulheres no Brasil (1983-2023), o estudo foi defendido no programa de História Social da FFLCH em 2023, sob orientação do professor Flávio de Campos.

Para analisar o tema, foi estabelecido um recorte temporal de 1983 a 2023. Os dois marcos consideram a regulamentação do futebol feminino no Brasil e a finalização da tese, com duas entrevistadas que jogam atualmente. A pesquisadora explica que “o futebol como trabalho, nos anos 1980, é muito diferente do futebol como trabalho hoje em dia. Então a intenção era pegar um recorte um pouco mais longo para perceber as mudanças e as permanências ao longo desse período”.

Instabilidades

A partir desse recorte, Fernanda dividiu o futebol de mulheres em três fases a fim de entender como as jogadoras brasileiras vivenciam o futebol como trabalho. A primeira fase, entre 1983 e 1995, corresponde ao período de lutas pelo reconhecimento da modalidade após a regulamentação do futebol feminino no Brasil, que foi proibido por quase 40 anos. 

“A proibição cai em 1979, mas fica um limbo entre 1979 e 1983, até a regulamentação. A partir de fontes históricas, documentos oficiais, entrevistas, fotografias e da imprensa, eu criei essa periodização. A minha visão é que, entre 1983 e 2023, é possível dividir o futebol de mulheres brasileiras em três fases. A primeira fase é uma busca por muito reconhecimento para que a modalidade seja vista”, afirma Fernanda.

Infográfico mostra as fases do futebol de mulheres no Brasil. Dividido em três fases, a primeira entre 1979 e 1995, a segunda entre 1996 e 2019 e a terceira entre 2019 e 2023
Para entender como as jogadoras brasileiras vivem o futebol como trabalho, a pesquisadora dividiu o futebol de mulheres em três fases entre 1979 e 2023 – Imagem: Elaborada por Fernanda Haag

Os Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, foram um marco para o futebol de mulheres no Brasil, época em que a modalidade já era mais reconhecida, mas ainda havia problemas relacionados à falta de estrutura e profissionalismo. “Na segunda fase, de 1996 a 2019, tem a primeira olimpíada com o futebol feminino como modalidade olímpica, mas há muitos altos e baixos durante esse período. Uma característica do futebol de mulheres no Brasil é o efeito sanfona, que mostra a instabilidade do futebol feminino, com ciclos de crescimento e de retrocesso. Outra coisa interessante da segunda fase é a questão do aporte público. Teve investimento de diferentes esferas, federal, estadual e da esfera municipal. Na esfera federal, o Bolsa Atleta teve um papel muito importante”, destaca a historiadora.

A última fase se inicia a partir de 2019, com a Copa do Mundo na França, e tem continuidade até o presente. Com relação a esse período, a pesquisadora reflete de forma positiva sobre o futuro do futebol feminino no Brasil. “A gente está em um processo de ascensão, a modalidade está se profissionalizando em termos globais, vamos ser sede da Copa em 2027, que é uma baita conquista. Com mais patrocínio, mais visibilidade e mais transmissões, a realidade das atletas enquanto trabalhadoras muda, elas têm contratos de trabalho e mais segurança”, diz Fernanda.

Com o objetivo de entender as percepções das jogadoras sobre o futebol como trabalho, Fernanda entrevistou oito jogadoras, que atuaram em diferentes períodos dentro do recorte temporal estabelecido.

Trabalho e futebol: uma relação ambígua

Se, atualmente, o futebol feminino tem mais reconhecimento, é porque mulheres pioneiras pavimentaram o caminho para que as novas gerações pudessem correr. Após a regulamentação, o esporte ainda era muito incipiente no País e as futebolistas enfrentaram diversos desafios. Em 1988, ocorreu o Torneio Experimental da China, primeiro campeonato feminino organizado pela Fifa, que tinha como objetivo avaliar o interesse do público pelo futebol de mulheres, servindo como parâmetro para organização do primeiro Mundial, que veio a acontecer três anos depois, em 1991.

As jogadoras não receberam uniformes para participar da competição e, por isso, tiveram que usar as camisetas restantes da seleção masculina, o que exigiu que as próprias atletas costurassem os uniformes para ajustá-los. 

Duas entrevistadas atuaram nos campos durante a década de 1980, quando o futebol de mulheres dava seus primeiros passos em direção à regulamentação, na busca pela conquista de melhores condições de trabalho e reconhecimento. As experiências vividas no futebol feminino enquanto uma modalidade incipiente fizeram com que as jogadoras desenvolvessem uma relação ambígua com o esporte.

 
Jogadoras da seleção brasileira de 1988 aparecem posando para foto com a camisa verde e amarela

Com caráter experimental, a China sediou o primeiro Torneio Mundial de Futebol Feminino, em 1988, em que a seleção brasileira conquistou a medalha de bronze – Foto: Reprodução/Acervo Museu do Futebol – Coleção Simone Carneiro

Em um dos relatos, Fernanda conta que uma das jogadoras foi muito direta ao afirmar que “não era jogadora profissional por não se dedicar exclusivamente ao futebol”. Os treinos aconteciam à noite e os jogos eram nos finais de semana. Por isso, ela não considerava sua atuação no futebol como um trabalho. Contudo, essa percepção mudou com a participação em clubes estrangeiros. “Quando ela vai jogar na Itália, se depara com outra estrutura, outra realidade, que permitia viver do futebol. Aqui no Brasil, mesmo tendo jogado em clubes grandes, ela jogava futebol paralelamente”, explica.

Já em outra entrevista, uma das jogadoras contou que não via o futebol como uma modalidade profissional. Mas, no fim de sua carreira, a atleta passou a ver o futebol como um trabalho, quando começou a receber remuneração. “Há uma relação ambígua porque em alguns momentos ela vai dizer que não era profissional, ela não vivia daquilo. Nos anos 1990, ela considera que foi profissional porque o futebol pagava o seu salário. Essa ambiguidade diz muito sobre como todas as relações de trabalho eram muito frágeis.  Nesse primeiro momento, mais do que uma luta para estabelecer uma profissionalização, era uma luta para estabelecer reconhecimento”, comenta Fernanda.

Desafios e avanços na modalidade

Por conta dos avanços e das conquistas, algumas jogadoras passaram a se reconhecer enquanto atletas profissionais. Mesmo assim, a insegurança quanto às relações de trabalho e a falta de estabilidade na modalidade foi uma preocupação que esteve presente no relato de todas as jogadoras entrevistadas. 

“A carreira de jogadora é instável. Uma peculiaridade do futebol de mulheres comparado com o futebol de homens é que os contratos das mulheres são mais curtos. Se o contrato é de um ano, elas não sabem se no ano seguinte terão emprego, se o contrato vai ser renovado ou não. E as jogadoras têm que performar no ápice do alto rendimento, dar o máximo e isso exige muito da saúde mental e do corpo. Então essa instabilidade é uma coisa que preocupa todas elas”, diz a historiadora.

Fernanda explica que o contrato de trabalho não é uma regra da modalidade e, quando ele existe, nem sempre é cumprido. Por isso, a visão do futebol como um trabalho não está vinculada necessariamente à existência de um contrato.

“O futebol era trabalho para elas porque assim elas encaravam. Elas tinham muita dedicação e muito empenho para aquilo. Toda a rotina era voltada para o futebol. Muitas mudaram de cidade, saíram cedo de casa e deixaram de sair com os amigos para praticar o esporte. Realmente, a vida delas girava ao redor do futebol, então era um grau de empenho e sacrifício muito grande. Isso fazia com que, para elas, o futebol fosse um trabalho. Essa relação de dedicação era mais forte que o contrato. O contrato vinha para legitimar, como uma segurança de que elas iriam receber algo que compensa todo sacrifício”, declara a pesquisadora.

Essa experiência do futebol como trabalho devido ao alto nível de empenho exigido pela modalidade é visível no depoimento de uma das entrevistadas, que deu o título à tese: “O futebol não foi profissional comigo, mas eu fui com ele”. Mesmo que as condições de trabalho não fossem profissionais, a atleta se considerava como uma trabalhadora do futebol.

Em 2016, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) estabeleceu regras de participação para os clubes que disputaram a Copa Libertadores. Desde 2019, só podem jogar os clubes que tiverem uma equipe feminina profissional. A medida teve como objetivo ampliar a visibilidade e os investimentos na modalidade feminina.

 
Mulheres sentadas assistem ao jogo, projetado em um telão, do Brasil contra Jamaica pela Copa do Mundo Feminina de 2023. As torcedoras usam a camisetas da seleção, nas cores verde e amarelo e azul e amarelo.

A Copa do Mundo Feminina de 2023 bateu recordes de audiência, sendo o Mundial Feminino mais visto na história – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Outro avanço foi a escolha do Brasil como sede para a Copa do Mundo Feminina de 2027. “A gente conseguiu ganhar para ser sede da Copa, o que é uma vitória. Isso reflete o crescimento da modalidade no Brasil e o trabalho sério de mulheres que lutaram, defenderam e elaboraram o projeto da candidatura. É muito importante ter mais mulheres em cargos decisórios na modalidade. A gente vem avançando cada vez mais e isso se reflete nas condições de trabalho das jogadoras”, celebra Fernanda.

Com mais visibilidade, as atletas têm mais investimentos e, consequentemente, melhores condições de trabalho. Por isso, Fernanda defende que “os direitos de transmissão precisam melhorar. A gente ainda tem transmissões deficitárias, horários de jogos absurdos. Os direitos de transmissão são muito importantes porque você precisa de visibilidade para ter patrocínio, para ter dinheiro e para os clubes se interessarem em dar estrutura para essas mulheres”.

**Texto por Jornal da USP