Toda regra pública deve balizar a conduta de instituições, das entidades e das pessoas para que o convívio social seja harmônico, justo e seguro. Essa regra chamamos de LEI. No aspecto prático é preciso observar que existe uma sobreposição das regras impostas. Grosso modo, existe uma pirâmide hierárquica que ilustra bem a estrutura jurídica do Estado brasileiro. No “topo” está a Constituição Federal, no “meio” estão as Leis e os Decretos Federais, bem como as Constituições e Leis Estaduais e na “base” estão as Resoluções, as portarias, as circulares e os comunicados administrativos. Peço então, caro leitor, que leia as 3 (três) regras ao final transcritas e as datas de suas edições.
Conforme é possível observar a Lei de Trânsito tratou a segurança do trânsito em 1997 enquanto a regra maior – Constituição – só abordou o tema em 2014 – 6(seis) anos depois – e para corrigir outra omissão e ambiguidade que ela própria criou em 1988: a falta de conceituação da segurança viária e da mobilidade (CF/88, artigo 144, § 10) e a competência para as atividades já previstas pelo CTB (CF/88, artigo 144, § 10, incisos I e II). O que isso importa para nós?
Minha resposta: tudo! Conforme ensinou o expoente jurista e jusfilósofo brasileiro Miguel Reale, a norma jurídica só é valida e eficaz quando atende a seguinte fórmula: LEI = FATOS + VALORES. A Lei deve guardar relação direta do seu objeto (fatos) com seus motivos determinantes (valores). Se assim não for a Lei não “funciona”. Nesse aspecto a Lei de Trânsito deixou de atender a finalidade maior, que deveria ser a defesa da vida, da integridade física e do meio ambiente para atender a arrecadação de tributos e penalidades aplicadas aos proprietários e infratores, neste caso por meio das multas.
Ora, os valores sociais para a diminuição dos acidentes e mortes no trânsito teem, como fonte natural, os costumes decorrentes da cultura das massas. É uma cultura conservadora, no caso da segurança do trânsito. Porém, no Brasil, o Estado conseguiu criar, materializar e impor sua própria cultura à partir da Constituição Federal/88. Criou-se uma ambiguidade “constitucional” promovida e reconhecida por ex-presidentes da República, como José Sarney e Fernando Henrique Cardoso.
Neste aspecto penso que, nos últimos 31 anos, para as questões do trânsito, prevalece a cultura do Estado e não a cultura das massas, com valores sociais coletivos e individuais; ou seja, prevalece a vontade das instituições públicas, por suas autoridades. Isso importa porque o cenário político atual segue uma pauta de “ideologia política” que é, à bem da verdade, ideologia político-partidária antes dita como sendo social-democrata e hoje dita como liberal-conservadora, ou seja, termos totalmente incompatíveis de concepções políticas que o Brasil desconhece e insiste entrelaçar.
A cultura do Estado, embora praticada, não é reconhecia pelas autoridades públicas com um poder decisório na segurança do trânsito; obviamente, porque ocupam espaços na estrutura do Estado e por isso conseguem alçar direitos e dosar seus próprios deveres, da forma e no tempo que bem entendem.
O efeito disso, no trânsito, não poderia ser pior: a Lei Maior, que sempre traz princípios e concepções para determinado direito neste caso veio depois da Lei de Trânsito – hierarquicamente inferior. Essa não é uma inversão irrelevante ou uma discussão meramente acadêmica porque, inexistindo regra Constitucional coerente permaneceremos com o problema do álcool-drogas x direção, do controle de velocidade (radar), da quantidade de pontos para a suspensão da CNH – 20 ou 40? – do uso do celular, o uso de “cadeirinhas” para crianças, cinto de segurança em ônibus urbanos e por aí vai.
A cultura do Estado, nas questões do trânsito, envida esforços para a arrecadação tributária do IPVA, taxas diversas e multas aplicadas, neste último caso sob alegação de ser este o mais eficaz de mudar o comportamento arredio de motoristas e pedestres. Políticas públicas consistentes, duradouras e com metas e objetivos ao longo do tempo o Estado brasileiro nunca teve e assim mantém até agora. Em 2016, chegamos ao absurdo de assistir autoridades Governamentais afirmarem que, em razão do crescimento da frota de veículos, os acidentes e mortes só podem aumentar (!?).
Essa mesma cultura do Estado sobrecarrega os agentes de fiscalização impondo-lhes atribuições e competências variadas e diversas de modo deixá-los na linha de frente com os motoristas e pedestres já saturados pelos abusos e resultados pífios da administração do trânsito. O conflito passou ser permanente e inevitável. Muitos agentes fazem além do que suas forças suportam mas, mesmo assim, sofrem com as mazelas dessa cultura do Estado da mesma forma que nós, população.
A cultura das massas, que busca a preservação da vida e manutenção da ordem no trânsito, pouco tem conseguido fazer. Em 2013, através da mensagem “não é só 20 centavos!” uma onda cívica surgiu e até modificou alguns panoramas. O foco foi e ainda é o transporte público que está diretamente ligado ao trânsito. Todavia, a cultura do Estado seguiu firme na sua sanha reformadora até o ano de 2018, quando uma possível mudança foi desenhada e hoje está em curso. Porém, esse curso ainda segue um rumo desconhecido pela população.
Dos anos que lido com o tema trânsito uma coisa posso dizer com relativa certeza: para um trânsito seguro e menos violento é preciso substituir a cultura do Estado pela cultura das massas. E isso tem de ser urgente. No ano de 2012 já era possível observar que, ao longo de 5 anos – portanto até 2017 – haveria uma aumento brutal em relação ao número de acidentes de trânsito, em especial envolvendo pedestres e motociclistas. E essa ascendente continua subindo.
A cultura do Estado, ainda que melhore em alguns pontos, continuará olhando para seu próprio umbigo e não para as necessidades do trânsito brasileiro. A cultura das massas precisa agir e retomar seu legítimo espaço. Se falha os “representantes” eleitos e os mecanismos legais disponíveis então pelos mecanismos cívicos igualmente legítimos. Um novo 2013 mas, desta vez, com uma pauta única: uma nova Lei Maior – a Constituição – feita pela sociedade e onde prevaleça a cultura da vida e não a cultura da multa. Difícil? Como tudo em sociedade, SIM. Impossível? Desta vez, NÃO!.
“(Código de Trânsito Brasileiro, artigo 1º, § 2º, de 23.09.1997). O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito”
“(Código de Trânsito Brasileiro, artigo 1º, § 5º, de 23.09.1997). Os órgãos e entidades de trânsito pertencentes ao Sistema Nacional de Trânsito darão prioridade em suas ações à defesa da vida, nela incluída a preservação da saúde e do meio-ambiente.”
“Constituição Federal – Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
(Parágrafo 10 e incisos incluídos pela Emenda Constitucional nº 82, de 16.07.2014)
- 10. A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas: I – compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; II – compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei.