É exatamente isso que você leu. Isso não implica, todavia, que a América constitua um país comandado por um regime ditatorial. Ao contrário, é a única nação do globo que jamais foi tocada pelas mãos de ditadores e governos autoritários. Nas vésperas da eleição deste ano, o tema nunca foi tão importante, todavia pouco compreendido ou estudado.
A primeira pergunta que normalmente é feita é qual a razão da não existência de rupturas totalitárias? A resposta é objetiva e simples: trata-se de uma república de fato, não apenas na nomenclatura, como nossa república latrino-cloroquiniana. Há na fundação dos Estados Unidos da América a mais profunda filosofia política de Aristóteles. É mais simples que aparenta, amigo leitor. Não fuja.
Herdeiro da filosofia socrática e platônica, Aristóteles, antecipando Thomas Hobbes, fundamentou sua concepção de vida pública, grosso modo, no mais básico processo da análise de Sócrates: a maiêutica (parto), a qual envolvia duas atitudes indeléveis e indispensáveis para a busca da verdade objetiva: abandonar valores, ideias e conceitos pretéritos -basicamente a renúncia da história pessoal, tornar-se uma folha em branco, e assumir a conduta metodológica o questionamento incessante, a demolição do edifício para enxergar seus alicerces.
Uma vez que a busca do conhecimento transforma-se no fim último da existência do indivíduo, um filósofo na acepção correta do termo, o indivíduo, tanto para Platão, quanto para Aristóteles, estaria apto para governar, sempre norteado pelo bem comum. Há, entretanto, uma discordância entre mestre e aprendiz. Aristóteles, de forma mais realista e pragmática, aprofundou suas perspectivas históricas, temendo por deturpações geracionais e lampejos de ganância, basicamente reconhecendo a natureza manipulável, autoritária e predatória da existência humana.
O filósofo grego, em um resumo didático e grosseiro, entendeu a democracia como uma forma deturpada de governo, uma ditadura da maioria, e cada um norteado pelos próprios interesses. Uma pólis ideal seria dirigida pela politeia, uma democracia que todos fossem filósofos. Logo, o bem comum como única prioridade. Ciente do utopismo do último cenário, Aristóteles assumiu que o bem comum poderia emanar não dos governantes e ocupantes de funções públicas, mas de leis e instituições, as quais solidificam barreiras nítidas para a conduta coletiva e da vida pública. Surge então a pergunta de como conceber tal arcabouço? A solução dada pelo aluno de Platão foi que, novamente grosso modo, um grupo seleto de filósofos, condensação de circunstâncias históricas e sociais, incumbir-se-ia da elaboração minuciosa do corpo de instituições e leis.
Aristóteles fundamentou os famosos pesos e contrapesos, limites institucionais e legais da atuação humana na vida pública. Montesquieu desenvolveu tais ideias com a tripartição moderna dos poderes institucionais: legislativo, executivo e judiciário.
Não houve, nesse sentido, ocasião semelhante que fosse tão propícia para que o sistema republicano fosse concebido por indivíduos de capacidade única, transcendente. Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, George Washington, Alexander Hamilton, Thomas Paine etc., os famosos Founding Fathers (pais fundadores) da nação. Verdadeiros filósofos. A questão do zeitgeist, elucidada na obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo” de Max Weber, torna translúcida a conjunção de fatores impossíveis de emular.
Estabelece-se então a ponte com o presente. Na sua fundação, os americanos já temiam a ditadura da maioria. Ben Franklin dizia que democracia nada mais é que “dois lobos e um cordeiro decidindo o jantar”. O modelo de votação, portanto, não foi o da maioria simples, mas sim o Colégio Eleitoral, no qual cada estado tem seu peso eleitoral calculado não só pelo número de eleitores, mas também pela dimensão territorial e representação no Congresso e Senado. Preto no branco, impede que as grandes zonas urbanas controlem a vida política da nação. Abaixo, observa-se a concentração de eleitores por cor na última eleição presidencial Trump x Clinton.
Há no país um contrapeso à maioria. Nada mais republicano, mais representativo. Caso fosse uma democracia de fato, a Casa Branca seria ocupada por um eleito que sua representatividade não abrange sequer 40% do território americano. O presidente eleito, consequentemente, é o representante dos mais variados ambientes e aqueles que os habitam, os quais constituem a diversa América. O Colégio Eleitoral, portanto, é um limite objetivo ao poder da maioria, uma negação do sistema democrático. República e democracia são, consequentemente, antagônicos, sistemas excludentes, não coexistem.
Não obstante, é salutar os limites institucionais vigentes. É cômico e trágico explicar a um americano como um juiz da suprema corte brasileira investigou, legislou e puniu em um único processo. Ou como Dilma Rousseff foi deposta por um impeachment constitucional, mas manteve inalterados seus direitos políticos. Depressiva a narrativa de um senador preso, mas com o mandado em vigência por decisão de seus pares. São bizarrices, evidências da putrefação institucional resultante do verborrágico documento constitucional estabelecido em 1988. A Constituição Cidadã vale outro artigo. Apenas retomo as palavras de José Sarney: “esta constituição tornará o país ingovernável”. Bigode grosso. Diagnose formidável. E os EUA permanecem com basicamente o mesmo documento desde 1787.
Parece que Aristóteles estava certo.
Cadê meu Rivotril e minha cloroquina?