Pesquisadores da USP e da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, dos Estados Unidos, desenvolveram um estudo que analisou como o ambiente familiar e contextual afeta o comportamento de brasileiros considerados “muito jovens”, residentes em áreas urbanas empobrecidas de São Paulo. A pesquisa do Brasil integra o Global Early Adolescent Study (Geas), primeiro estudo multicêntrico a investigar o aprendizado de normas e comportamentos de gênero entre adolescentes de 10 a 14 anos e suas implicações para a saúde física e mental dessa população.
A faixa etária de 10 a 14 anos de idade vivencia uma das fases mais críticas do desenvolvimento humano, embora seja uma das menos compreendidas e investigadas. O estudo destaca a vergonha e a timidez, sobretudo de meninas, em procurar informações e métodos de proteção para evitar gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. Apesar da idade média dos participantes ser de apenas 12,2 anos, 24% relataram ter trabalhado no ano anterior.
Dados da pesquisa revelam ainda que: 15% dos jovens entrevistados já tinham ingerido bebida alcoólica; 8% já fumaram tabaco; 22% tiveram cinco ou mais experiências adversas na infância. Perguntados se alguma vez sentiram que não havia ninguém para protegê-los, 36% responderam que sim. 9% dos participantes relatou já ter visto a mãe ser agredida, espancada ou sofrer ameaças.
Estudos mostram que as crianças vítimas de maus-tratos na infância e adolescência têm maior probabilidade de terem problemas de comportamento persistentes (como problemas de conduta, uso de substâncias e atividade sexual precoce) e dificuldades em diferentes aspectos das relações entre pares (vitimização, dificuldade em relacionar-se com os pares). Esses autores apontam também que outros relacionamentos interpessoais e positivos como a relação entre os pares e no ambiente escolar podem desempenhar um papel de proteção e mudar a trajetória do desenvolvimento.
Construindo trajetórias seguras
Liderado por renomados especialistas, como o Dr. Robert Blum e a Dra. Caroline Moreau, da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, o projeto contou com a participação de pesquisadores de diversos países, como Bélgica, Chile, China, Estados Unidos, Indonésia, República Democrática do Congo, África do Sul e Malawi. No Brasil, o estudo contou com a coordenação da professora Ana Luiza Vilela Borges, do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem (EE), e dos professores Cristiane da Silva Cabral e Ivan França Júnior, do Departamento de Saúde e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública (FSP), ambos da USP. O projeto foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Na etapa quantitativa brasileira foram entrevistados, entre agosto e outubro de 2021, em seus domicílios, 996 adolescentes de 10 a 14 anos. Ao todo, 473 meninos e 523 meninas, todos moradores de áreas de abrangência de Unidades Básicas de Saúde (UBS) da zona leste da cidade de São Paulo.
O questionário abordou os seguintes temas: vida em família, vida digital, saúde, saúde mental, experiências adversas da infância e autonomia. De acordo com os pesquisadores, esses tópicos foram explorados para entender como diferentes contextos e experiências moldam as normas e comportamentos de meninos e meninas.
“O Geas-Brasil permite compreender as diversas dimensões da vida dos adolescentes muito jovens, desde as relações que se estabelecem entre os pares, quanto aos namoros, relação com o próprio corpo e saúde, experiências de violência e de vida em família. Também é possível compreender mais profundamente como é a sua trajetória na aquisição de autonomia e como isso pode repercutir nos indicadores de saúde, como conhecimento sobre métodos contraceptivos”, afirma Ana Luiza Borges, que também é vice-diretora da EE.
Ao final do estudo foi confeccionado um relatório com os dados do Geas-Brasil que representa um marco para a compreensão das dinâmicas de gênero e saúde entre adolescentes muito jovens em contextos urbanos empobrecidos e oferece subsídios para desenvolver políticas públicas eficazes e inclusivas para esse grupo.
Impactos do isolamento social
A investigação também contempla uma visão a respeito dos impactos da pandemia em múltiplas dimensões entre adolescentes de baixa renda, destacando a importância do contato social e as dificuldades enfrentadas durante o isolamento. Segundo a professora Cristiane Cabral, a pesquisa realizada com esses jovens é importante porque os adolescentes nessa faixa etária estão em uma fase de transição significativa em suas vidas caracterizada por mudanças rápidas, tanto físicas, quanto psicossociais.
“Nesse período entre 10 a 14 anos, entram em cena a formação e a aquisição de muitas habilidades e comportamentos, inclusive aqueles relacionados à saúde. Conjuntamente o processo de aprendizado das normas e valores relacionados ao gênero e à sexualidade também se intensifica significativamente”, ressalta.
A pesquisa mostrou a necessidade de construir uma rede de formação, informação e de assistência em que pais e responsáveis, em conjunto com o sistema de ensino e de saúde, se esforcem na promoção de “trajetórias seguras”, livres de constrangimento e de situações de violência no âmbito interpessoal, doméstico, institucional ou comunitário.
“É importante criar espaços de cuidado integral para adolescentes nas UBS, com atividades específicas para esse público. Profissionais de saúde devem estar presentes em espaços escolares e em outros locais frequentados por jovens. Do mesmo modo, os professores precisam estar preparados para oferecer uma educação sexual e de gênero baseada em direitos humanos, com foco na construção da autonomia desse público”, comenta Cristiane.
Ainda conforme Cristiane, além da urgência da criação diálogo com os integrantes dessa faixa etária, os estudos mostraram uma elevada quantidade de jovens que sofreram ao menos uma experiência traumática na infância. “Neste estudo, entendemos por experiência adversa na infância eventos que podem comprometer seriamente o desenvolvimento dos adolescentes, incluindo abusos, violência e dificuldades econômicas. Esses fatores são mais prevalentes em contextos de vulnerabilidade socioeconômica e racial, afetando de maneira desigual meninos e meninas”, explica a professora.
**Texto de Jornal da USP