Não são tempos fáceis. Além de todos os efeitos nefastos que a pandemia trouxe, assolando a humanidade com milhões de vidas desperdiçadas, sonhos encurtados e perdas (para alguns, irreparáveis), experimentam-se movimentos antagônicos acalorados pela sensibilidade aflorada diante de tantos dramas. E claro, alguns espertalhões tiraram proveito para agirem como corvos, a tripudiar o bom senso que restava da humanidade enquanto corpo social. Concomitante a isso, nalgum recanto da cidade, pessoas se esgrimem por causa do seu político querido. Amizades são perdidas, famílias em crise (quem nunca as presenciou em grupos de conversas familiares?!), tudo por conta de preferências políticas exercidas com um afinco invejável, muitas vezes como ato de fé, inquebrantável e inquestionável. Quando assim professada, passa a ser uma expressão irracional, instintiva e despida de senso crítico-reflexivo.
Abre-se este espaço para trabalhar algumas percepções sobre um delicado momento experimentado especialmente dentro da realidade brasileira: a aposta na polarização política.
A diversidade de opiniões e de posições ideológicas é ínsita ao universo da política, para não dizer, da vida em sociedade. A riqueza social reside na pluralidade das pessoas e da diversidade de formas, comportamentos, orientações, condições físicas, intelectuais… As liberdades individuais, principalmente as que tratem do exercício dos direitos políticos, resguardam a livre expressão e opinião. Obviamente que, do ponto de vista jurídico, não existem direitos absolutos. Mas sobre isso, melhor tratar profundamente em outro momento.
Os partidos políticos não são pontos de uniformidade. Já nascem semanticamente divididos, para abrigarem a representatividade mediada de parte dos cidadãos. Portanto, as disputas e os confrontos políticos devem ser normalizados como parte do processo institucional.
Ao cumprir as regras do jogo, o partido político buscará alçar o poder para colocar em prática aquilo que prometera. Ou não, em se tratando de agremiações fisiologistas ou parasitárias… E cabe ao cidadão, vigilantemente cobrar, seja o representante eleito pela sua escolha, ou não. Quem é eleito, governa, quem perde, tem a prerrogativa de se opor – ou até mesmo, de compor-se, caso conveniente. Nada de novo está a ser dito! Por isso que, do ponto de vista sociopolítico, as disputas eleitorais são marcadamente espaços de debates, de dizer quem é que merece exercer funções representativas e de nelas permanecer.
A pergunta que abre este texto é fundamentada na seguinte premissa: somos todos diferentes. O pluralismo político é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Assim, se o direito brasileiro protege as diferenças – sem preconceitos, discriminações, perseguições – como elemento estruturante das relações políticas, por qual razão seria aceitável perder uma amizade ou desfazer um vínculo pessoal, por causa de nossas preferências eleitorais contrapostas?
Não se despreza a perspectiva de que, sob o falso pretexto de vestir uma camiseta política, pessoas passem a expelir ódio e profundo senso de intolerância, mediante violência inclusive (desde as verbais até às vias de fato). Defesas desta natureza não decorrem da cidadania plena, mas da bílis animalesca de quem tenha desapreço por quem não seja o seu reflexo. A democracia morre no individuo quando a sua incivilidade cresce.
Divergir é oportuno e importante ao desenvolvimento. Tentativas de uniformizar o pensamento ou condicionar escolhas, sob o pretexto de que, quem não ama o meu preferido será o meu inimigo, obrigando as pessoas a seguirem uma única via – como se outras tantas não existissem – é traço da falta de maturidade política, de um pensar totalitário, unidirecional.
Propõe-se aqui a unidade como caminho conciliatório: assumindo que as diferenças devam ser valorizadas e, mesmo que inexistam horizontes consensuais (vai ser difícil concordar em tudo!), que o senso de humanidade prevaleça na construção de caminhos que resguardem a integridade de nossas relações pessoais e sociais.
Quando seremos capazes de debater ideias, dialogar propostas e de buscarmos consensos pelo bem comum, sem que pautas desconexas e obscuras dominem o centro do que nem periférico deveria ser? Cabe aqui um exercício: o do respeito mútuo. É uma via de mão dupla: respeitar o outro para ser respeitado.
Se mantivermos um ambiente de fraternidade (como intuiu Chiara Lubich), nossas diferenças serão infinitamente inferiores do que aquilo que nos une. E quem sabe, as relações aprimoradas civicamente, trabalhadas no dissenso e não no plano de guerras/batalhas.
Para que a política possa ser considerada uma expressão transformativa dos anseios da população, devemos compreender que as formas de enxergar o percurso possam estar desalinhadas do nosso modo de perceber o horizonte. E amizades não precisarão ser desfeitas se tolerarmos o antagonismo como parte do processo, sem deificação dos políticos de plantão, muitos dos quais usam desta estratégia diversionista para apoiar conflitos em benefício próprio. Claro que não precisaremos nos vergar e tolerar abusos, malfeitos, discriminações, ofensas. Mas, para evoluirmos enquanto sociedade, imprescindível que sejamos capazes de dialogar, ouvir quem está ao nosso lado e pensa diferentemente, objetivando que pontuais discordâncias não passem a ser o ponto nodal a ancorar relacionamentos.
Carlos Drummond de Andrade escreveu à Manoel Bandeira em Política Literária: “O poeta municipal/ discute com o poeta estadual/qual deles é capaz de bater o poeta federal./Enquanto isso o poeta federal./tira ouro do nariz”.
Não nos esqueçamos daqueles que ainda tiram ouro do nariz enquanto o povo peleja na miséria…