Violência transforma polícia em algo parecido com bandido, diz ex-secretário da Segurança Pública de SP

Confira na íntegra a entrevista do ex-secretário, Marcos Vinicio Petrelluzzi

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Imagem ilustrativa | Foto: Jusbrasil

Quando era secretário da Segurança Pública de São Paulo, Marcos Vinicio Petrelluzzi diz que ele e o então governador Mário Covas (1930-2001) eram extremamente cuidadosos com as mensagens que passavam para as forças de segurança.

“O papel de quem lidera pessoas armadas é o de pregar a moderação, jamais de pregar a radicalidade”, afirma. Ao mesmo tempo, diz, eles procuravam equilibrar o discurso. “Eu tinha muito medo de passar a imagem de que a gente não queria que a polícia agisse”, afirma ele, que assumiu o cargo no início de 1999. Deixou a pasta em janeiro de 2002, um ano após Geraldo Alckmin assumir no lugar de Covas.

Para Petrelluzzi, a falta desse equilíbrio nos discursos das lideranças atuais –o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário da pasta, Guilherme Derrite (PL)– promoveram tanto o aumento da letalidade da PM paulista como as cenas em vídeo que viralizaram nas últimas semanas, com danos para a imagem da polícia de São Paulo.

“Infelizmente, esse dano vai permanecer por algum tempo. E a luta para voltarmos a uma política de redução de danos na questão da letalidade será mais trabalhosa”, avalia.

PERGUNTA – Quando a letalidade policial passou a ser vista como problema?

MARCO VINICIO PETRELLUZZI – A primeira vez que se falou em redução de letalidade foi no governo Mário Covas. O índice de letalidade na polícia de São Paulo era muito alto, seja de policiais, seja de mortos em confrontos. Colocamos como meta a redução, e a polícia abraçou isso. Foram feitos vários programas.

O primeiro, ainda na época do [secretário da Segurança Pública do primeiro mandato Covas] José Afonso da Silva, foi o Proar, em que o policial envolvido em evento com resultado morte ficaria um tempo afastado. A gente entendia que matar alguém e ir para casa não é normal. Mesmo dentro do aparato de legítima defesa, não é normal. A pessoa tem que ter um acompanhamento psicológico porque não existe essa função de carrasco no serviço público brasileiro. O programa nasceu dentro da própria polícia, e governo o acolheu. Mas apanhamos muito do pessoal de extrema direita, que sempre existiu e que brigava que a polícia tinha que matar mesmo.

P – O que acontece quando esse discurso ganha o poder?

MVP – Quando isso acontece, de você ter pessoas dentro do governo ou próximas ao governo com esse discurso, a polícia acaba indo além do que ela deveria ir. O caso que era isolado começa a parecer que não é mais isolado, que é um método de comportamento.

Você tem que entender o seguinte: a polícia militar tem uma estrutura militar de disciplina. A palavra do chefe é muito respeitada. Não vou dizer que eles obedecem exatamente a tudo, mas, se o chefe tem um discurso de “bandido bom é bandido morto”, isso passa para a tropa, que sente que tem de cumprir isso. O papel de quem lidera pessoas armadas é o de pregar a moderação, jamais a radicalidade.

P – Quais as causas do aumento da letalidade policial em São Paulo?

MVP – Não tenha dúvida que é fruto de uma mensagem política que entrou na polícia vinda da liderança do governo e do próprio governador, que reconheceu que estava errado sobre o uso das câmeras, por exemplo. O programa de câmeras corporais foi desenvolvido dentro da polícia. Só que muita gente via isso como uma limitação para o policial.

Eu acho que é o contrário. É uma segurança do policial, porque, quando ele tiver que agir, pode agir com muita tranquilidade porque está tudo gravado. Agora, se ele parte do pressuposto que vai fazer coisa errada, aí a câmera é ruim.

P – Quem é contra o uso das câmeras apoia ações ilegais de policiais?

MVP – Tem muita gente que é contra porque acredita que a polícia tem que ser violenta mesmo, que só assim você confronta o crime. Isso é um grave erro, porque transforma a polícia numa coisa parecida com o bandido. E quando você aponta para isso, a pessoa fala: “Não, mas o bandido fez isso, fez aquilo”. Sim, mas a polícia não é bandido. A polícia é polícia. É lógico que ser policial de rua não é moleza. É algo capaz de brutalizar uma pessoa.

A polícia é a Geni. Se você precisar dela, viva a Geni. Se você não precisar dela, joga pedra na Geni. Todo mundo ria quando o Charles Chaplin chutava a bunda do policial porque a polícia é símbolo da autoridade que as pessoas gostam de desafiar. Mas quando a polícia toma a Justiça nas próprias mãos, vira barbárie.

P – Poderia exemplificar, para além do que já se viu nas últimas semanas?

MVP – Eu me lembro de um caso em que eu atuei como promotor da Justiça militar. Tinha um sujeito em uma favela da zona sul cujo apelido era Horroroso, não porque ele fosse feio, mas era horroroso de mal: tinha matado muita gente, até criança. Aí uma guarnição resolveu matá-lo. Eles foram pra favela, cercaram o barraco, entraram e mandaram bala no cara, que estava deitado no sofá. Quando saíram, se deram conta: “Ih, não era aqui!”. Então, eu sou contra isso em qualquer circunstância. Você não pode dar esse poder para ninguém porque ele acaba corrompendo as pessoas. A polícia age com as informações que ela tem, e muitas vezes são informações erradas.

P – O governador Tarcísio já disse não estar “nem aí” para denúncias de abusos de policiais. Isso prejudica a punição dos que ferem a lei?

MVP – Do jeito que a coisa está, mesmo com esse recuo do governador, que eu elogio, precisa ver como vai continuar lá dentro. Se continuar com a mesma mensagem, não vai adiantar muito.

P – Qual é a consequência a longo prazo deste tipo de mensagem? Como reverter seus efeitos?

MVP – As consequências dessas mensagens mudam mais rapidamente a favor da violência do que para reprimir a violência. No meu tempo, tinha muita reclamação do Proar. As entidades dos policiais vieram fazer audiências comigo e disseram: “Olha, doutor, o senhor tem razão do ponto de vista civilizatório. Mas esses policiais tinham um horário de trabalho que permitia que fizessem bicos. Quando ele vai para o horário normal, ele perde o bico. E cai o rendimento dele”. Aí nós flexibilizamos isso. A gente tirava o policial da área, mas ele podia fazer o mesmo turno de antes. Olha, sem brincadeira, não demorou um mês para começar a subir o índice de homicídios praticados por policiais. E nós voltamos atrás porque essa flexibilização tinha passado a mensagem de que havia certa concordância com o que estava acontecendo. Eu tinha muito medo de passar a imagem de que a gente não queria que a polícia agisse. Porque também tem esse risco. E quando precisa usar a força, tem que usar a força.

P – Como fica a imagem da polícia depois desses casos recentes de ações ilegais?

MVP – O efeito é ruim e leva tempo para recuperar. E vou dizer mais: o povo, em princípio, é a favor de o policial ser duro. Porém, quando acontecem as barbaridades, no início ainda tem certo apoio da população, em seguida ele vai morrendo. Com os 111 do Carandiru foi assim. As primeiras pesquisas mostravam algum apoio. Depois, aos poucos, isso foi virando na medida em que emergia a história verdadeira.

O dano causado pelas imagens que a gente viu agora vai demorar para passar. E esse dano acaba atingindo mais os policiais que o governo. Eu sempre defendi muito os policiais, porque eu acho que mesmo um policial que não é grande coisa, 90% das vezes está fazendo coisa boa. Às vezes, ele faz bobagem, e aí tem que ser punido por isso. Mas a polícia presta um serviço muito importante e difícil, que requer paciência e que é muito pouco valorizado socialmente.

MARCO VINICIO PETRELLUZZI, 68

Foi secretário da Segurança Pública de São Paulo de 1999 e 2002. Formado em direito pela USP, com especialização em direito penal, foi professor na Unicamp, FMU e Unip . Foi procurador da Justiça do Estado de São Paulo e assessor especial do governador Mário Covas, quando coordenou o Grupo Especial de Estudos de Segurança Pública.

FERNANDA MENA / Folhapress

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