Gosto da realidade de dentro das pessoas. É por ali que as leio, pelos vãos dos olhos, dos lábios, pelos espaços não preenchidos, por onde nascem os sonhos mais ousados e indizíveis. Gosto das coisas que cabem num balanço, que podem ser levadas com o vento, que mudam de cor ao tocar as mãos de outra pessoa. Gosto tanto, que de quase nada desgosto. O que não me serve é tão pouco, que vira um verso torto para ganhar novo uso. O que faço quando não tenho vontade de gostar é esperar. Para além de tudo que entendo, que vejo, fico com o que sinto. E espero que um dia a vida se sente ao meu lado, sem a força contínua e bruta do tempo, para me dizer, calmamente, que nunca, enquanto esperava, fui apenas eu a esperar sozinho.
E tantas coisas passam por nossos olhos de sentir, que são, de fato, mais de sentir do que de ver. Gosto do final de Vidas Secas, a obra-prima de Graciliano Ramos: “E andavam para o Sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias”. O meu novo livro, A última estrela tropical (Editora Patuá), não por acaso é encerrado com essa epígrafe, com esse texto de base para o poema derradeiro, dedicado ao meu filho Gabriel. Afinal, somos o nosso próprio sonho, nossa própria utopia. Num dos trechos do poema, digo: “Um pensamento inventado me mostra que há a vida, essa, e uma outra, que de pouco em pouco me faço perceber. Como na feitura de desamassar palavras, sucateadas de tédio e cansaço, e dar a cada nova forma o livre entendimento”.
Definir a vida, como definir a si mesmo, é impor a si um limite. Deixe para os livros técnicos a tarefa de definição. Pessoas não podem e não devem ser definidas. Como sonhos não merecem ficar guardados em caixas de pensar. Quem pensa demais perde o bonde, um bonde chamado desejo. Lembrou-se daquela peça de teatro que virou filme? É isso. O estadunidense Tennessee Williams, em uma de suas peças, afirmou: “Sou o contrário de um mágico. Ele lhes dá uma ilusão com aparência de verdade. Eu lhes dou a verdade sob o disfarce agradável da ilusão”.
Às vezes, é preciso dirigir o comboio da vida sem as mãos. Enfrentar a loucura com loucura. Porque só os loucos abrem as janelas da alma para acalentar o céu, quando ele está mudo de estrelas, digo eu, na minha jornada reclusa de poeta. Por outro lado, percebo que a revolta só arma os dentes, mas a revolução cria asas no corpo fraturado dos dias. Não. Não sei soletrar a palavra mundo sem abrir nela uma rosa, uma infância. Uma rosa que desabroche com o seu povo. Uma infância que apague do rosto do homem a decadência dos gestos obrigatórios. Viver é distante. Nascer pode ser agora.