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Você vai mudar depois da pandemia?

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O gaúcho cavalgava pela estrada de terra de Quaraí para Alegrete a fim de fechar alguns negócios. No meio do caminho, na manhã fria de inverno, avistou ao longe um vulto – também a cavalo – parado em meio ao um charco. O viajante se aproximou e viu a seguinte cena: um homem usando um chapéu de barbicacho, o corpo inteiro coberto por um poncho preto que respingava pelas franjas as gotas provocadas por uma chuvinha fina. O homem tinha um bigodão preto e a cara fechada em rugas de quem não queria conversa. O cavalo estava atolado de barro até a altura do peito e por isso completamente imóvel.

Vendo aquela cena congelada no meio do pampa, o quaraiense parou a marcha e disse:

– Estou vendo que o amigo está atolado. Quer ajuda pra sair daí?

O cavaleiro em apuros, morador do Alegrete, respondeu com voz firme e sem agradecer:

– Não! Confio no meu cavalo.

O gaúcho de Quaraí deu de ombros e seguiu sua viagem até Alegrete. Na volta, no finalzinho da tarde, deparou-se com o homem atolado no mesmo lugar, porém, numa situação bem pior. A chuva não cessara e a lama já cobria o corpo inteiro do cavalo. Só com a cabeça prá fora, o bicho tinha os olhos arregalados e bufava prá conseguir respirar. O negociante repetiu a oferta de auxílio, desta vez com mais ênfase:

– Amigo, vejo que agora não tem jeito. Posso jogar meu laço prá te ajudar a sair deste barro?

O alegretense nem virou o rosto para responder:

– Não! Confio no meu cavalo.

Quaraí e Alegrete são cidades rivais da fronteira oeste do Rio Grande do Sul e a anedota nascida entre os moradores da primeira localidade mostra os alegretenses como tipos muito teimosos. Os alegretenses não acham ruim e também contam o causo, só que para mostrar como é grande o orgulho de quem nasce por lá.

As duas cidades tem motivos para uma rixa em alto nível. Quaraí é a terra dos escritores Dyonélio Machado, Ciro Martins e do pianista de renome internacional, Miguel Proença, recentemente demitido da presidência da Funarte pelo presidente Bolsonaro.

Alegrete responde com o poeta Mario Quintana e com Osvaldo Aranha, o político que empurrou Getúlio Vargas para a Revolução de 30 e que presidiu a ONU no processo de criação do estado de Israel.

De minha parte, o orgulho é duplo por serem as cidades de meu pai e minha mãe.

Mas esta é uma história de teimosias de quem está atolado até o pescoço e não muda nem por nada neste mundo. Tenho cá prá mim que a mudança de comportamento é para o ser humano a negação da sua própria existência. É mais ou menos como afirmar que se você está vivo é porque aposta numa série de conceitos que garantem a sua respiração e os seus batimentos cardíacos. Deixar de acreditar naquilo que você pensa como sendo o correto, o mais eticamente recomendável e moralmente justificável seria o mesmo que pedir para o corintiano passar a defender o alvi-verde com todas as forças do seu coração. É como crer que o alegretense atolado pudesse aceitar ajuda do quaraiense. Ninguém muda bem assim.

A adaptação é outra conversa e esta sim é a que pode trazer algum nível de transformação em nossas sociedades. Estamos nos adaptando a usar máscara, lavar as mãos, evitar aglomerações. Estamos aprendendo a trabalhar em casa e ao mesmo tempo conviver com os filhos e as tarefas domésticas. Poderemos sair da pandemia provocada pelo novo coronavírus com outros hábitos, orientados por novos protocolos sanitários. Mas será que sairemos mudados em nossas crenças mais profundas?

Mudar prá valer implica na revisão de conceitos muito sedimentados em nossa alma, desde o relacionamento com os que nos cercam, até o modo como encaramos a vida em grupo, em sociedade, em um estado democrático. Implica em admitir o diverso, ouvir uma opinião contrária e, ao menos, refletir sobre isso antes de correr para postar o ódio nas redes sociais. Bem difícil. Mais difícil ainda é compreender a necessidade de uma nova forma de relação da humanidade com o planeta e seus recursos, com o uso da terra, da água e do ar. Entender que o combate à desigualdade social é também uma forma de enfrentar pandemias.

Mudar é tão difícil que o ser humano prefere acreditar em mentiras – como a teoria da terra plana – a ter que admitir um conceito evidente e diverso de sua crença. Esta afirmação é objeto de estudos acadêmicos desde os anos 1950, a partir de uma série de trabalhos iniciados pelo psicólogo Leon Festinger. No popular, é o seguinte: se você ainda pensa que a covid não passa de uma gripezinha e vê um parente muito próximo ser contaminado e levado a um leito de UTI, o seu cérebro vai procurar se defender da contradição e para não entrar em parafuso a saída é acreditar em alguma teoria maluca que misture preconceito, conspiração, imprensa e negação da ciência.

A humanidade inflexível está frente a frente com um inimigo que usa exatamente a arma oposta. O novo coronavírus faz da mudança constante a sua estratégia de ataque e sobrevivência. Quando se acredita que ele foge do calor, a mortandade explode no coração da selva amazônica. Quando a preocupação se concentra na crise respiratória, o repique vem nas manifestações de AVC, infarto, trombose e até sumiço do olfato.

Diferentemente dos humanos, o vírus muda para enganar e invadir células. Já a humanidade é capaz de enganar a si própria para não ter que mudar. Festinger criou a teoria da “Dissonância Cognitiva” para explicar como nossos cérebros fazem de tudo para acabar com as contradições, mesmo que para isso o preço seja acreditar numa história absurda. Cada indivíduo faz qualquer negócio para não ter que mudar uma vírgula daquilo que pensa a respeito do mundo e de seus acessórios. É por isso que o cavaleiro atolado prefere confiar no cavalo a ter que aceitar ajuda de um desafeto. Para ele, a mudança é impossível mesmo que lhe custe a vida.