Faz um ano que Silvio Santos morreu, mas a verdade é que ele nunca nos deixou. A televisão brasileira continua impregnada de sua voz, de seu gesto expansivo, de sua capacidade única de transformar a tela em praça pública. E talvez esse seja o enigma central de Silvio: ele não era apenas um apresentador, era uma linguagem. Criou um modo de falar com o público que se confundiu com o próprio país.
De Senor Abravanel, camelô da Lapa, a dono de emissora, há uma travessia que só pode ser contada como fábula moderna. Mas o que impressiona não é apenas a biografia improvável, é a maneira como ele a transformou em espetáculo. Silvio encenava a si mesmo, fazia da própria vida um roteiro em tempo real, onde a ascensão social, o carisma popular e até os tropeços viravam matéria de entretenimento. Sua narrativa pessoal era sua maior criação, e o público, cúmplice de cada capítulo.
No palco, o improviso era sua arma. Não havia roteiro capaz de contê-lo. As câmeras o seguiam, mas jamais o conduziam. Ele dominava a cena com a naturalidade de quem vendeu canetas na rua: sabia que todo show é uma transação, um pacto tácito de sedução e confiança. Cada gesto: lançar dinheiro ao auditório, brincar com calouros, interromper propagandas era um ato metalinguístico. Silvio não apenas apresentava, ele comentava o próprio ato de apresentar. Ria de si mesmo, desmontava o jogo diante dos olhos do espectador e, paradoxalmente, reforçava o encantamento.

Essa consciência do espetáculo como espetáculo o tornava singular. Enquanto outros apresentadores cultivavam a seriedade, Silvio mostrava as costuras do palco. Expunha microfones, zoava os jurados, tirava sarro das regras que ele mesmo inventava e deixava claro que embora estivesse sob a direção de supostamente alguém no programa era ele que mandava. Era um mágico que revelava os truques sem perder a magia. E nisso, talvez, resida sua maior contribuição: ensinou que a televisão não precisa fingir neutralidade, pode assumir-se como jogo, como encenação coletiva.
Um ano após sua morte, a televisão brasileira parece órfã não de um homem, mas de uma gramática. Silvio deixou um idioma que ninguém mais fala com a mesma fluência. O SBT é único no mundo, suas as tardes de domingo permanecem no sangue que corre na veia de suas filhas, mas aquela mistura de caos e proximidade, de espetáculo e intimidade, ninguém conseguiu reproduzir.
Silvio Santos foi, no fundo, o grande narrador da vida popular no Brasil urbano do século XX. Fez do auditório uma metáfora da nação: barulhenta, desigual, generosa, sempre em busca de prêmio e aplauso. E é por isso que sua ausência não é silêncio, mas reverberação. Ele continua entre nós como lembrança, como citação, como bordão. O dono do palco que nunca saiu de cena.
Saudade, SS.



