“Adolescência” — a falência moral dos adultos e o menino moldado pelo algoritmo

Fabrício Correia
Fabrício Correia
Fabrício Correia é jornalista, escritor, professor universitário, especialista em Acessibilidade, Diversidade e Inclusão. É crítico de cinema, membro da Academia Brasileira de Cinema e apresenta o programa “Vale Night” na TV Thathi SBT.
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Há algo em “Adolescência”, série britânica da Netflix, que não permite distanciamento. Ela não é uma ficção sobre um crime, mas um documento cruel sobre o que restou da infância quando os adultos se renderam ao conforto da ausência. O tempo inteiro, ela aponta o dedo para quem assiste — e o faz sem gritar.

Com apenas quatro episódios, filmados em plano-sequência, sem cortes visíveis, “Adolescência” acompanha as reações de uma escola e de uma família após um menino de 13 anos, Jamie, ser preso por assassinar uma jovem da mesma escola. A série não mostra o crime. Mostra o rastro. A rachadura antes da queda. A formação da violência. E o desespero mudo de todos os que, em algum momento, podiam ter impedido — e não o fizeram.

O roteiro recusa explicações fáceis. Jamie não é tratado como exceção. A sua construção não está no gesto final, mas nas horas anteriores — quando já era possível ver o menino se desfazendo. É um garoto calado, trancado no próprio corpo, com acessos de raiva que não parecem ameaçadores, até serem.

Ele vive com os pais. Tem quarto, escola, acesso à internet, telefone. Tudo o que qualquer um da sua idade teria. E é justamente aí que mora o abismo. Jamie é filho de uma geração que confundiu presença com vigilância, cuidado com funcionalidade, amor com reação automática. A mãe, interpretada com brutal delicadeza por Cristine Temarco, é uma mulher visivelmente esgotada. Carrega a culpa, mas não sabe mais o que fazer com ela. O pai, vivido por Stephen Graham — também criador da série — aparece, mas sem força. A masculinidade que oferece ao filho é a do silêncio e da distância. O menino aprendeu cedo que homem não chora, não fala, não fraqueja. E quando a dor veio, ele ficou sozinho com ela.

A escola não é ambiente de acolhimento. É um espaço tenso, cheio de formalidades e evasivas. Diretores que temem exposição. Professores que percebem, mas não intervêm. Colegas que circulam em silêncio. Cada adulto que passa por Jamie tem consciência de que algo está errado — mas ninguém quer ser o primeiro a dizer.

O impacto da série está na forma com que ela retrata o encadeamento da omissão. O plano-sequência não é um truque. É uma escolha ética. O tempo segue sem cortes, porque na vida real também não há pausa. Quando Jamie grita, já gritou antes. Quando agride, já vinha pedindo socorro. A câmera não o persegue — convive. O espectador não observa de longe — compartilha a aflição, sem a liberdade de virar o rosto.

A tragédia aqui não é apenas a morte da jovem. É a morte lenta de um laço que deveria proteger o menino e a menina — e não o fez. Jamie foi doutrinado, como diz o criador Jack Thorne, por vozes violentas. Por discursos misóginos que circulam nas redes como verdades. Por figuras como Andrew Tate, citado brevemente na série, e por tantos outros influenciadores que se aproveitam da insegurança masculina para transformá-la em discurso de ódio.

A série não denuncia essas figuras diretamente. Mas aponta para o vácuo em que elas se instalam: o da casa sem escuta, da escola sem autoridade, do mundo adulto que preferiu acreditar que tecnologia educa, que liberdade basta, que o afeto é intuitivo. Jamie cresceu nesse vácuo.

No terceiro episódio, com a entrada da psicóloga interpretada por Erin Doherty, há a tentativa de entender. Mas o menino já não tem linguagem. Não se trata de trauma isolado. Trata-se da incapacidade estrutural de nomear o que sente. A psicóloga pergunta, com cuidado. Jamie hesita, sorri, foge, explode. O que ele sabe dizer está contaminado. Sua raiva é sua única gramática emocional.

A força de “Adolescência” está em não buscar redenção. Não há arco de superação, nem fechamento moral. A série termina sem respostas. Como deve ser. Porque ela não está interessada em nos consolar. Está interessada em nos responsabilizar.

O que se vê é o retrato de um adolescente que poderia estar em qualquer lugar: no metrô, na fila da escola, no sofá de casa. Um menino deixado diante da tela por horas, dias, anos. Que aprendeu a ser homem ouvindo discursos de guerra. Que nunca foi abraçado na raiva. Que nunca foi ensinado a lidar com o desejo. Que confundiu controle com força. E que não teve nenhum adulto disposto a interromper essa formação antes que fosse tarde.

Jamie é o filho do século XXI. Nasceu cercado de tecnologia, de acesso, de vídeos. Mas privado de linguagem emocional. Quando errou, todos se assustaram. Mas ele já estava gritando há muito tempo.

“Adolescência” é a autópsia de um menino ainda vivo. E a certidão de fracasso de todos que acham que basta amar para formar alguém.

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