Não é a denúncia que rompe. É o tempo entre a escuta e a reação. O que Luca Guadagnino filma em “Depois da Caçada” não é o escândalo, nem a queda; mas a hesitação. A zona nublada onde mora o silêncio de quem vê e não fala. De quem ama e não salva. De quem sabe e, mesmo assim, se omite.
Julia Roberts nunca esteve tão contida, tão internamente partida. Alma, sua personagem, é uma mulher que busca a coroa para terminar a carreira, respeitada, enraizada, blindada pela polidez das instituições. Quando uma aluna rompe essa bolha com uma acusação grave contra um professor da casa, Alma precisa escolher: proteger o que construiu ou permitir que algo desmorone, mesmo que não seja dela. Mas Alma é, acima de tudo, alguém que pensa, calcula, e o tempo da ética, no filme, é um relógio quebrado.
Essa suspensão entre o certo e o conveniente é o verdadeiro protagonista do filme. Guadagnino abandona a paixão explícita de outros projetos para adotar um olhar clínico, quase anestesiado. Os corredores de Yale, filmados com reverência, mais parecem labirintos de uma mente em colapso do que espaços reais. O mundo ali não é uma universidade: é uma consciência em debate. Cada plano, pausa ou respiração contém uma pergunta que ninguém formula em voz alta.

O filme se move como quem pisa em cacos. A câmera observa, mas não invade, a trilha sonora sussurra é como estar dentro de uma memória que se recusa a ser lembrada. Guadagnino filma com a frieza de quem sabe que o trauma, quando enfim é reconhecido, já feriu tarde demais.
Alma é uma esfinge moderna. Roberts oferece uma performance quase mineral, parece se esculpir em contenção. O roteiro, embora carregado de tensões morais contemporâneas, abuso de poder, cultura do silêncio, erros pedagógicos, cancelamento, legado intelectual, não quer tomar partido. E essa recusa em apontar o dedo é tanto o que o torna interessante quanto o que o torna frustrante. O filme ensaia um debate, mas evita o confronto. Provoca, mas não morde.
Ayo Edebiri, como a aluna denunciante, é intensa e direta, mas o filme não lhe dá voz suficiente. Andrew Garfield, o acusado, aparece mais como ideia do que como presença. Todos orbitam em torno de Alma, que permanece um centro imóvel. A personagem não evolui: ela é desvelada, camada por camada, até restar o que sempre esteve lá. O que se vê, ao fim, não é uma transformação. É uma revelação melancólica.
Há momentos em que “Depois da Caçada” ameaça arder; seja em uma troca de olhares atravessada por desconfiança, uma aula interrompida pelo peso do não dito, um bilhete esquecido. Mas, como a própria Alma, o filme prefere resistir ao incêndio. Guarda-se.
E ainda assim, não sai da cabeça. Talvez porque expresse algo profundamente contemporâneo: a paralisia moral da elite progressista, o medo de errar em público, o embaraço em admitir que também fomos cúmplices. Guadagnino não oferece redenção. Um filme sobre aquilo que não fizemos. Sobre os momentos em que disfarçamos nossa covardia de ponderação. Sobre como, ao evitarmos a dor, criamos uma versão mais palatável da verdade e a chamamos de justiça.



