Era preciso um filme que traísse a forma para ser fiel ao artista. E “Homem com H” o faz. Ao renegar a previsibilidade da cinebiografia tradicional, Esmir Filho faz da imagem um palco onde Ney Matogrosso pode finalmente não ser explicado. Porque Ney jamais pediu tradução — sempre quis olhos abertos. E, sobretudo, coragem.
No Brasil, onde os corpos são policiados e o desejo é culpa, Ney sempre foi um equívoco deliberado. Um animal que cantava. Um erro para os militares, uma heresia para os moralistas, uma afronta viva para quem acreditava que o gênero era destino. O filme compreende isso desde o primeiro plano: não se trata de contar uma história. Trata-se de suportar sua existência.
O filme se recusa a narrar Ney; escolhe orbitá-lo. É um cinema que gira em torno de uma estrela que já nasceu supernova. A montagem, quebrada, espelhada, intuitiva, assume a forma do delírio. E faz bem. Porque Ney é fragmento, é salto, é interrogação. Sua trajetória é feita de cortes — da infância austera, da juventude militar à cena underground, dos palcos iluminados às travessias no escuro da censura.
Jesuíta Barbosa é quase uma encarnação. O corpo do ator se oferece, se reconfigura, se esvazia para que algo mais antigo e mais feroz possa emergir. Não há em cena uma imitação — há uma epifania. O modo como o ator se move não é gestual, é geográfico: ele mapeia o espaço com o quadril, reconstrói o mundo com os olhos, desafia o tempo com os ombros nus. A pergunta que perpassa o filme não é “quem foi Ney Matogrosso?”, mas “o que o Brasil fez — e ainda faz — com corpos como o dele?”.
A trilha sonora não serve à narrativa. As canções entram como lampejos de memória, mas também como cicatrizes.
A cenografia e os figurinos operam como alegorias de resistência. Esmir Filho transforma essas escolhas estéticas em dispositivos narrativos. O palco se torna trincheira. O espetáculo vira protesto.
Mas o mais notável em “Homem com H” é o modo como ele inscreve o desejo. O filme é erótico — não porque mostra corpos, mas porque os sentem. Ney sempre desejou homens com a mesma naturalidade com que respirava. E isso, no Brasil, foi escândalo. O filme não suaviza esse aspecto: celebra. E ao fazer isso, reafirma que o amor entre homens pode ser tão revolucionário quanto um ato político. Porque é.
A relação com Cazuza é tratada sem voyeurismo. É uma aparição delicada, sussurrada, ferida. Um encontro entre dois corpos que sangravam a mesma liberdade. O filme entende que, para Ney, amar sempre foi um ato perigoso. E canta isso com sobriedade.
Não estamos diante de um filme sobre um artista. Estamos diante de um filme que revela, com poesia e brutalidade, o Brasil que somos.



