Jards Macalé morreu, e a notícia, convenhamos, chegou com a precisão indelicada de um oficial de justiça. Não que a morte de um homem de 82 anos, vividos com a inconformidade de quem acaba de receber uma multa de trânsito injusta, possa ser chamada de surpresa. Não. Mas o fim de Macalé, depois de dias em hospital e, dizem, de um último despertar onde cantou como quem ainda acertava o som no ensaio, foi de uma concisão que beira o mau gosto. Nada de fogos, nada de discursos inflamados. Apenas o ponto final seco, a caneta que para de escrever e pronto.
Macalé, no panorama da nossa música, nunca foi um morador. Era o sujeito que estacionava o carro atravessado na frente do prédio. O Brasil produzia, com sua obsessão provinciana por harmonia e bom comportamento, os pianistas de luva branca, os arranjadores de precisão cirúrgica, os cantores de dicção de colégio suíço. E de repente, surgia ele. Com aquele sorriso que parecia guardar um comentário irônico, a postura de quem está prestes a quebrar um vaso de cristal caro, e a intenção manifesta de não se encaixar. Era a antítese do bom-mocismo musical, e por isso mesmo, era fascinante.
Enquanto a maioria se esforçava para construir obras que fossem imediatamente compreendidas e aprovadas, Macalé se contentava em criar climas. Um riff, um verso torto, uma inflexão vocal que transformava o ouvinte em cúmplice de um segredo sujo. É a diferença entre o arquiteto e o flanelinha. O arquiteto projeta a casa; o flanelinha conhece o atalho, a fresta, a porta dos fundos. “Vapor Barato”, na voz dele, não é uma canção; é a confissão de um crime que jamais será perdoado. Ele não polia a emoção para o consumo; ele a entregava bruta, com o cheiro de suor e a sinceridade de quem não tem mais nada a perder.
Convivia com os titãs do Tropicalismo e da MPB, mas sempre com a distância saudável de quem sabe que a intimidade é o primeiro passo para a domesticação. Era o amigo que sempre estava no canto da foto, à margem da moldura oficial, como se a qualquer momento fosse sair para tomar um uísque barato no bar da esquina. Não era humildade; era o instinto de preservação de quem sabe que o centro das atenções é o lugar onde a mediocridade se sente mais à vontade. Manteve a distância. A inteligência dele não permitia o conforto da bajulação.
O que ele deixa não é uma herança de frases de efeito ou de camisetas com slogans. Deixa discos. E cada um soa como um bilhete apressado, escrito na ponta da mesa, com uma caneta que falha de vez em quando, mas que nunca se dá ao trabalho de mentir. A importância de Macalé não caberá nas colunas frias dos obituários que hoje o enquadram. Ele era a liberdade de quem não precisa de colete salva-vidas na nau da indústria musical.
A melhor homenagem, no entanto, é imaginar a sua reação. Provavelmente um levantar de sobrancelha, um comentário que ninguém entenderia direito na primeira audição, e um pedido para que a luz do palco ficasse um pouco mais escura, mais aconchegante para quem está de saída.
O Brasil segue, claro. Mas segue mais burro, mais surdo e menos disposto a admitir que há beleza no que não foi “passado a limpo”. A bússola dele se quebrou, e ficamos com a memória de um norte que não aceitava cartilha. Macalé não buscou a glória. Ele a encontrou, por acaso, enquanto fazia o que lhe dava na telha. E agora, recolhido à sua própria lenda, só nos resta apertar o play e tentar entender o essencial. Porque, de fato, ele jamais se deu ao trabalho de se explicar. E graças a Deus por isso.



