No início era o grito. Ou melhor: o deboche. Rita Lee nunca pediu licença — e, se pedisse, provavelmente cuspiria na porta logo em seguida. O documentário “Ritas”, de Oswaldo Santana e Karen Harley, não tenta conter essa Rita. Também não a explica. O que faz — com certa coragem e uma ternura rara no audiovisual brasileiro — é permitir que a própria artista conduza sua narrativa como quem folheia um álbum íntimo, sujo de requeijão, cheio de gatos e fantasmas. E esse gesto, aparentemente simples, é revolucionário.
“Ritas” não é um documentário no sentido tradicional do termo. Não há “entrevistados”. Não há dramaturgia. É um monólogo ritualístico — um último café com leite oferecido pela própria Rita a nós, seus filhos bastardos do pop tropical. A base é uma longa entrevista inédita gravada em 2018, já no exílio rural da artista, quando ela havia trocado os palcos por samambaias e santinhos — James Dean, Nossa Senhora Aparecida, Hebe Camargo, Elvis, o E.T. de Spielberg — todos convivendo harmoniosamente em seu altar pessoal. Nada mais Rita.
Há algo de encantadoramente anticaretice na estrutura do filme. Ao evitar o tom escolar, a cronologia enfadonha e os depoimentos em cascata — fórmula tão batida nos documentários biográficos — “Ritas” constrói um autorretrato. Mas atenção: autorretrato não é autoelogio. Há sombras no filme, embora nem todas venham à tona. A saída amarga d’Os Mutantes, por exemplo, é narrada apenas por Rita. Os demais integrantes não aparecem — nem precisam. Estamos no terreno do sagrado pessoal, não do processo judicial.
O que me toca, como crítico — mas, sobretudo, como fã — é a maneira como o filme permite que Rita fale sobre o tempo. Não como cronologia, mas como matéria viva. A juventude despenca do telhado em imagens de arquivo, os figurinos saltam como armaduras de uma guerreira da contracultura, os personagens que ela encarnava nos anos 90 voltam como ecos de uma palhaça cósmica e punk. Mas é na Rita dos últimos anos — vestindo quimono, acariciando gatos, amando Roberto em silêncio — que o filme encontra sua maior delicadeza.
O que “Ritas” revela, e talvez nem saiba, é o paradoxo da liberdade: a mulher que mais gritou por autonomia artística e existencial encontrou sua plenitude no silêncio da chácara, no ritmo dos bichos, no cotidiano sem pose. Não é o fim da rebeldia. É o cume dela.
Claro, há omissões. A filmografia de Rita é muito maior do que o filme comporta. Faltam os discos malditos, as fases experimentais, as discussões políticas mais espinhosas. Mas a ausência, aqui, parece menos uma falha e mais uma escolha. Como se a Rita do fim, alquimista do seu próprio tempo, quisesse deixar apenas aquilo que lhe cabia ainda dizer. “Em geralda, minha vida foi o máximo”, sentencia. E quem somos nós para duvidar?
Enquanto muitos documentários musicais se contentam em empilhar curiosidades e vender nostalgia como conteúdo, “Ritas”tenta fazer o que só os grandes artistas fazem: sentir. É um filme de atmosferas, de pausas, de olhares cúmplices. Um filme que sabe que Rita Lee não cabe em rótulos — nem mesmo no de “Rainha do Rock Brasileiro”, ainda que ela tenha sentado no trono com a irreverência de quem também cagaria nele, se assim lhe desse na telha.
Como fã, saí do cinema com os olhos molhados. Mas não era tristeza. Era saudade misturada com gratidão. Rita Lee nos ensinou a viver fora da caixa antes mesmo de sabermos que estávamos nela. E “Ritas” é, talvez, sua última travessura. Um bilhete em vídeo. Um altar portátil. Um espelho com moldura psicodélica onde, por alguns instantes, podemos nos ver mais livres, mais doces, mais corajosos. Mais Rita.
Se você chegou até aqui, você a amava também. E “Ritas” é nosso ritual de despedida. Sem cerimônia. Mas com afeto. Como ela gostaria.



