“Vitória”: Um grito calado contra a barbárie

Fabrício Correia
Fabrício Correia
Fabrício Correia é jornalista, escritor, professor universitário, especialista em Acessibilidade, Diversidade e Inclusão. É crítico de cinema, membro da Academia Brasileira de Cinema e apresenta o programa “Vale Night” na TV Thathi SBT.
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“Vitória” é um filme que pesa no peito. Não como uma emoção fabricada, mas um peso real, denso, inescapável. Andrucha Waddington, um diretor que sempre teve domínio técnico, aqui alcança uma maturidade surpreendente, constrói um drama de rara potência. A história de Nina, uma mulher encurralada pela violência, munida apenas de uma câmera e da coragem de não se calar, poderia facilmente descambar para o sentimentalismo. Mas o filme não oferece alívio. Não nos conforta com a ideia de que basta um ato de bravura para que a justiça se faça. Ele nos empurra para dentro do pesadelo de um país onde a verdade, quando exposta, pode ser uma sentença de morte.

Inspirado na história de Joana da Paz, uma mulher que filmou e denunciou o tráfico de drogas em Copacabana, “Vitória” transforma essa tragédia invisível em um estudo sobre poder, medo e resistência. A atuação de Fernanda Montenegro é o centro gravitacional do filme. Sua Nina é alguém que já não espera mais nada do mundo, mas que, diante da barbárie, escolhe enfrentar o inevitável. É um tour de force de uma atriz que, aos 95 anos, nos dá uma personagem monumental, sem precisar levantar a voz ou recorrer a grandes gestos. Dona Fernanda nos faz sentir cada hesitação, cada medo contido, cada decisão tomada com a lucidez de quem sabe que não haverá retorno.

O filme não se limita à trajetória de Nina. Ele se expande para uma leitura mais ampla sobre o Brasil, um país onde o crime organizado e a corrupção não são exceções, mas engrenagens fundamentais da estrutura social. Não há promessas de redenção porque não há um antagonista único a ser vencido. A favela não é retratada como um cenário exótico de violência, mas como um espaço complexo, onde a ausência do Estado criou suas próprias regras. Os traficantes não surgem como vilões genéricos, mas como peças de um tabuleiro muito maior, no qual a única certeza é que os mais fracos sempre pagam a conta.

Andrucha Waddington nunca filmou algo assim. Sua trajetória foi marcada por uma estética mais estilizada, por uma certa leveza na abordagem do drama. Mas aqui ele opera de outra forma. A câmera sufoca. Os espaços são fechados, a luz escassa, a montagem ritmada pelo medo. Seu amadurecimento como diretor se faz sentir na contenção, na recusa a entregar respostas fáceis. Ele se permite confiar na força do material que tem em mãos. Se antes havia um cineasta talentoso, agora há um artista que entende o peso do silêncio.

O roteiro, concebido por Paula Fiuza e aprimorado pela presença inconfundível de Breno Silveira, que faleceu durante a produção, foge da espetacularização da miséria e constrói personagens que respiram, que carregam a dureza da vida nas entrelinhas. Silveira, que se dedicou a capturar histórias de luta e identidade no cinema nacional, deixa aqui seu último legado. Sua influência se percebe na precisão dos diálogos, no olhar humano que evita a redução de personagens a meros arquétipos.

Linn da Quebrada, no papel de Bibiana, entrega uma atuação comedida, mas afetuosa. Sua personagem, uma vizinha que vive na interseção entre o perigo e a solidariedade, é um contraponto a Nina. Enquanto a protagonista ainda pode se esconder atrás da câmera, Bibiana, uma mulher trans, está exposta, sem escudo. Linn interpreta Bibiana com um misto de urgência e exaustão, sem traços de caricatura, sem precisar sublinhar nada. É uma performance que dá peso à narrativa e amplia seu alcance.

Thawan Lucas, como Marcinho, é um retrato cruelmente real da juventude que cresce sob a sombra do tráfico. Não há ingenuidade em sua presença, nem rebeldia vazia. Seu personagem não é um vilão, nem uma vítima idealizada. Ele existe no meio do fogo cruzado, entre a necessidade e a impossibilidade de outra vida. Alan Rocha, como o jornalista que acompanha a história de Nina, traz um contraponto de pragmatismo, mas também de impotência. Seu papel reforça uma das mensagens mais amargas do filme: há um limite para o que pode ser feito. E esse limite, quase sempre, se impõe aos que tentam mudar alguma coisa.

A fotografia é parte essencial da narrativa. O apartamento de Nina se torna uma fortaleza e uma prisão. O uso da escuridão e dos planos fechados transforma a segurança de um lar em uma ilusão frágil. A câmera, quando finalmente sai para a rua, não busca a espetacularização da violência. Pelo contrário: ela se fixa nos rostos, nos silêncios, nos olhares que dizem mais do que qualquer tiroteio. A trilha sonora, de Antonio Pinto, discreta, amplifica a tensão sem precisar recorrer a manipulações baratas. Tudo é medido, preciso, necessário.

No final, “Vitória” não oferece uma solução. Ele nos obriga a lidar com o incômodo de saber que o mundo real não tem finais redentores. Joana da Paz morreu esquecida, assim como tantos outros que ousaram falar quando todos pediam silêncio. Nina, no filme, não é uma heroína no sentido convencional. Ela é alguém que decidiu não aceitar a inevitabilidade do medo. Mas o preço de sua escolha ecoa muito além da tela.

É impossível sair desse filme sem carregar algo dele. E quando os créditos sobem, a única reação possível é levantar-se e aplaudir de pé. Não apenas pelo cinema impecável, pela direção madura, pelo roteiro afiado ou pelas atuações gigantescas. Mas porque “Vitória” é um soco seco, um lembrete de que, no Brasil, coragem e solidão caminham lado a lado. E porque, no fim, o que resta é a pergunta incômoda: quem mais está filmando, neste exato momento, sabendo que talvez ninguém nunca veja?

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