RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Cerca 40% das apreensões de fuzis realizadas no Rio de Janeiro ocorreram em ações policiais letais. Especialistas temem que a premiação pela recuperação de armas do tipo estabelecida pelo governador Cláudio Castro (PL) nesta segunda-feira (21) provoque um aumento nas mortes provocadas por agentes do estado.
Dados do ISP (Instituto de Segurança Pública) mostram que, de janeiro de 2017 a março de 2022, dos 2.316 fuzis apreendidos pela polícia, 918 foram recolhidos em ações que tiveram mortes. No total, foram 1.267 vítimas em supostos confrontos com forças de segurança -17% das 7.400 mortes causadas por agentes do estado no período.
Os números fazem parte de cruzamento feito pela Folha de S.Paulo com base em microdados do ISP obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. Dados posteriores a março de 2022 não estão disponíveis de imediato.
O governador assinou um decreto que prevê o pagamento de R$ 5.000 de prêmio a policiais por cada fuzil apreendido. Os dados do ISP associados aos critérios adotados por Castro para delimitar a bonificação reforçam, para especialistas, a interpretação de que ela vai estimular indiretamente o aumento dos confrontos.
Um dos critérios apontados como indicativo de confronto é o fato de se premiar apenas policiais que constem no registro de ocorrência das apreensões. A decisão não beneficia agentes que atuaram na investigação, mas que não foram a campo para efetivar a retirada das armas.
O governo fluminense afirma que o objetivo da premiação é retirar armas de alto calibre para reduzir a letalidade no estado. Segundo o Palácio Guanabara, investigadores costumam participar das operações de apreensão.
As regras também não premiam o trabalho investigativo ao exigir que a arma apreendida seja capaz de produzir tiro. A limitação não beneficia trabalhos como o que mirou o ex-PM Ronnie Lessa, acusado de matar a vereadora Marielle Franco. Na ocasião, os agentes acharam na casa de um amigo dele peças desmontadas capazes de confeccionar 117 fuzis.
Para o governo, apreensões do tipo são exceção no dia a dia dos policiais.
“Qual é o método de retirada de fuzis premiado? É aquele que vai pegar a arma já municiada pronta para atirar. Em virtude do esvaziamento do investimento na investigação criminal, o esforço sempre foi tirar esse armamento já das mãos dos criminosos em favelas. E esse fuzil muitas vezes vem manchado de sangue. Às vezes, de inocente”, disse o coronel da reserva Robson Rodrigues, ex-chefe do Estado Maior da Polícia Militar.
O sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Geni/UFF (Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense), afirmou temer uma “corrida atabalhoada” com operações policiais em busca do prêmio.
“Esse mecanismo do sistema de metas e bonificações, por fundamento, orienta a ação dos atores submetidos a ele. É necessário pensar sobre os efeitos que podem causar esse direcionamento. No caso da apreensão de fuzis, tenho receio de que isso aumente o tipo de operação feita para apreensão de fuzis”, disse ele.
Especialistas comparam a premiação à chamada “gratificação faroeste”, instituída na gestão Marcello Alencar (1995-1998). Ela premiava policiais por “atos de bravura”, o que na prática estimulava o confronto e a morte em supostos confrontos.
“Sem programa de redução de letalidade policial, sem meta, a gente teme essa corrida de apreensão de fuzis a qualquer custo. É uma gratificação faroeste de maneira não direta. Se vai ganhar R$ 5.000, independente da quantidade de mortes para essa apreensão, há a valorização da atuação policial que não é o mais eficiente, inteligente. Nem o que deveria ser fomentada”, afirmou o cientista político Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
A redução da letalidade violenta (o que inclui as mortes em confronto) também é um dos indicadores do Sistema Integrado de Metas na segurança pública. Porém, o percentual de redução exigido tem sido cada vez menor. Para o segundo semestre deste ano, a meta é de queda de 1% -uma queda nos homicídios pode compensar aumento na letalidade policial, por exemplo.
“Tudo o que o governo Cláudio Castro tem feito, mesmo o que é em resposta à ADPF 635 [ação no STF sobre as operações da polícia fluminense], são respostas para fortalecer a lógica de combate, não importando se vai gerar mortes ou não. É quase um escárnio quando diz que está dando resposta à condenação pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos”, disse Nunes.
Entre as justificativas usadas por Castro para assinar o decreto está a condenação do estado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso das duas chacinas de Nova Brasília em 1990.
ITALO NOGUEIRA / Folhapress