6 em cada 10 médicas já foram vítimas de assédio no trabalho, diz pesquisa

Há dois anos, a médica mineira Thays, 29, foi assediada pelo seu preceptor no último período do curso, quando fazia o externato em um hospital de Goiás.

“Ele entrou na sala, trancou a porta, veio na minha direção e disse: ‘morena, o pessoal sempre inventa alguma coisa mesmo, que tal a gente dar um motivo?’ Na hora, travei, fiquei gelada, não conseguia fazer nada. Nunca tinha dado espaço para ele.”

A sorte de Thays foi uma colega bater na porta naquele instante, o que fez com que o médico abrisse a porta imediatamente. “Ele ainda saiu rindo. Até hoje sinto uma tremedeira quando me lembro da cena.”

Ao relatar o ocorrido em um grupo de alunas, ela soube que outras colegas e técnicas de enfermagem do hospital já tinham sofrido abusos pelo mesmo médico. “Uma delas me contou que ele havia lhe dado um abraço, segurado nos seus seios e dito que um era maior que o outro.”

Thays denunciou o médico à direção do hospital, mas diz que nada aconteceu. “O chefe disse que falaria com ele, que isso nunca mais aconteceria, mas ele continuou no mesmo cargo, tudo igual.”

O relato de Thays ilustra bem os resultados de uma pesquisa inédita que aponta que seis em cada dez médicas brasileiras (62,6%) já foram vítimas de assédio sexual e/ou moral em seu ambiente de trabalho. Uma taxa ainda maior (74%) testemunhou ou soube de casos envolvendo colegas.

Realizada pela AMB (Associação Médica Brasileira) e APM (Associação Paulista de Medicina), o levantamento online ouviu 1.443 profissionais de todo o país sobre situações de violência contra as médicas. As entrevistas ocorrem entre os dias 25 de outubro e 16 de novembro. A margem de erro é de três pontos percentuais para mais ou para menos.

A maior parte (95%) das entrevistadas tem título de especialista, 69% são casadas ou estão em união estável e 63% têm filhos.

De acordo com o levantamento, 70% das médicas já sofreram preconceito, quase um terço (31,7%) durante o curso de medicina, seguido do período de residência médica (39,8%) e da pós-residência (45,7%).

Metade das profissionais (51%) também relata ter sido vítima de agressões verbais e físicas. O percentual das que já testemunharam episódios de violência contra outras colegas chega a 72,3%.

A pesquisa mostra que 55,4% das médicas não denunciaram o assédio e outros abusos à chefia ou à diretoria. Entre as que o fizeram, uma minoria (11%) relata algum resultado, como apuração da denúncia ou outras providências.

Só 10% das profissionais que sofreram algum tipo de violência prestaram queixas a órgãos policiais ou judiciais. E dessas, apenas 5% afirmam que os casos foram apurados e os responsáveis, punidos.

“Mesmo quando denunciam, essas mulheres não são ouvidas, o que acontece em outras áreas também. Isso dá um desânimo total”, diz a médica Ivone Meinão, da APM, que coordenou a pesquisa.

Os resultados servirão para nortear ações de combate às situações de violência e de desrespeito contra as profissionais, segundo a médica Maria Rita de Souza Mesquita, secretária da AMB,

A entidade já criou um canal de denúncias em que as médicas podem registrar as queixas e receber orientação e respaldo jurídico.

Também está sendo montada uma comissão nacional de médicas que irá atuar sobre questões de segurança, de igualdade de gênero e de melhores condições de trabalho.

“As mulheres já representam quase metade da classe médica e, nos próximos anos, essa participação vai aumentar muito mais. Precisamos dar voz a essas novas lideranças”, diz Mesquita.

Embora a pesquisa não detalhe as fontes da violência física e moral, Meinão diz que muitas das agressões partem de pacientes e familiares. “Eles entendem que a mulher médica é mais frágil. Se for um médico homem, eles pensam duas vezes.”

As entrevistadas também foram questionadas sobre comportamentos inadequados em trotes e competições esportivas: 67,2% tinham conhecimento dessas situações.

“A grande maioria considera um absurdo, defende punições e acha que as entidades médicas devem se posicionar contra esses abusos.” Uma proposta da comissão é instigar os reitores adotarem medidas mais duras nessas situações.

Ataques pela internet foram outro tema das entrevistas. Quase um quarto das entrevistadas dizem que já foram vítimas deles ou conhece médicas que sofreram cyberbullying.

A pesquisa levantou ainda o que as médicas pensam sobre questões de igualdade de gênero na carreira. Quase 80% delas consideram que não há equidade.

Ao mesmo tempo, 82,5% dizem que a remuneração das médicas é igual à dos médicos em sua unidade de trabalho e 49% já foram indicadas a cargos de chefia.

“Embora a maioria não veja diferenças entre os salários delas com os dos colegas médicos, muitas se queixam que são preteridas para cargos de chefia, o que as colocam numa situação de desigualdade”, diz Meinão.

Das que já foram indicadas a um cargo de chefia, a maioria (89%) diz que não foram impostas condições restritivas à vida pessoal para assumi-lo.

Segundo Meinão, as médicas relataram muitas dificuldades no dia a dia, entre elas excesso de trabalho, desrespeito, misoginia e falta de apoio.

Só uma minoria (12,4%) diz, por exemplo, que há creche para os filhos em seus locais de trabalho. “Eu já tive que levar minha filha no carrinho para o posto de saúde que eu trabalhava por não ter com quem deixá-la”, conta.

CLÁUDIA COLLUCCI / Folhapress

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