SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – De atores de circo e donas de casa a ditadores e vítimas de tortura, os personagens nos quadros de Fernando Botero, morto aos 91 anos, são sempre gordos, dóceis, desajeitados e quase grandes demais para caber no mundo em que habitam.
Botero parecia viver num universo tão singular quanto o que inventou, de disciplina monástica em relação ao trabalho e consciente de ter criado um “estilo inconfundível”.
Em suas séries mais recentes, ele deu o mesmo tratamento rechonchudo a temas como as mazelas de Cristo, a violência na Colômbia sob o comando do narcotráfico e a tortura de prisioneiros por soldados americanos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque.
Em 2012, numa pausa do trabalho em pleno sábado, ele falou à Folha por telefone de seu ateliê em Mônaco. Leia trechos da entrevista.
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PERGUNTA – Por que o sr. retrata só personagens gordos?
FERNANDO BOTERO – Não pinto só figuras volumosas. O que me interessa é o volume. Essas formas são sensuais, não é um comentário sobre pessoas magras ou gordas. Antes, a pintura era plana e, no Renascimento, artistas como [o italiano] Giotto souberam dar volume às figuras. É a exaltação do volume que sempre me seduziu, é essa crença na sensualidade.
P – Mas personagens com essas feições estão em todas as suas telas. Não há certo exagero?
FB – Toda a pintura é exagerada. A paisagem cinzenta que Van Gogh via aparece avermelhada, azulada em seus quadros. Michelangelo e Matisse também exageraram.
P – Suas figuras gordas, então, são uma questão de estilo?
FB – É uma mistura de coisas. Tenho interesse pela arte pré-colombiana, mas minha formação é europeia. É um coquetel de coisas que acaba traduzido e sublimado na minha pintura. Um estilo não passa de uma reflexão sobre a excelência, e acredito que inventei um estilo inconfundível, que nasce das minhas convicções e meu respeito pela arte de formas clássicas.
P – Mas não resulta irônico esse estilo quando o sr. pinta temas sérios, como os torturados em Abu Ghraib ou as vítimas da violência na Colômbia?
FB – Picasso usou o mesmo estilo ao retratar sua amante Dora Maar e as formas de “Guernica”. Não posso criar um estilo para cada tema, e tampouco trato esses temas sérios com qualquer ironia. Posso pintar coisas inaceitáveis e monstruosas, mas nunca vou mudar meu estilo.
P – Suas influências mais marcantes são artistas clássicos, e o sr. já afirmou que a arte se desintegrou depois de Picasso. Como vê a arte hoje?
FB – Digamos que o problema é uma falta de estrutura. Disseram tanto ao Picasso que ele era um gênio que ele começou a fazer quadros sem estrutura. No final de sua vida, sua obra era um caos total, com uma técnica deplorável.
A verdade é que hoje a arte se baseia em ideias superficiais, artistas estão mais interessados em chocar do que em criar obras com qualquer senso de estrutura. Não é um momento glorioso na evolução das artes visuais. Acredito que a arte viva agora um momento deplorável.
P – É por isso que o sr. desistiu de patrocinar o tradicional prêmio a jovens artistas que levava seu nome na Colômbia?
FB – Sei que essa foi uma decisão polêmica, mas o júri havia dado o prêmio máximo a um vídeo, que era talvez o primeiro que aquele artista havia feito na vida. Não gostei das obras, nada me interessou, então achei que já não valeria mais a pena patrocinar esse tipo de coisa.
Vi que os jurados premiam coisas absurdas, como se morressem de medo do fim das vanguardas artísticas.
P – Como lida com seu sucesso comercial? Costuma acompanhar os resultados dos leilões?
FB – Não gosto de leilões porque criaram um gueto para artistas latino-americanos. Gostaria de estar nos leilões com os artistas do resto do mundo, já que tenho obras espalhadas por todo o planeta. Arte é universal, não deve estar identificada por regiões. Ser classificado como latino é ocupar uma categoria inferior, e não me considero inferior a ninguém.
SILAS MARTÍ / Folhapress