FOLHAPRESS – Por mais de um século, a transexualidade foi um tema praticamente ignorado pelo cinema e quando surgia, era de forma incompleta ou estereotipada. De alguns anos para cá, vários cineastas decidiram correr atrás do tempo perdido, e da falta de representação quase total, repentinamente houve uma explosão de tramas povoadas por personagens trans.
“A Filha do Pescador”, estreia na direção do colombiano Edgar De Luque Jácome, traz a história de Priscila, uma mulher transgênero que rompeu relações com o pai, mas que volta a procurá-lo.
O filme refuta a vertente do “lacre” ou da politização extrema dos corpos trans é como se fugisse do tom professoral de parte expressiva dos longas recentes sobre o tema, e opta por uma obra menos combativa, mais passível de diálogo com um público não muito iniciado no assunto. Ainda que, em nome disso, recaia em um resultado estético reduzido.
O longa se passa em uma ilha caribenha onde Samuel vive da pesca marinha, praticamente isolado. Há vários anos, seu filho, descontente com o próprio gênero, e sua mulher, infeliz no casamento, resolveram abandoná-lo, indo tentar a vida na cidade grande. Anos mais tarde, depois da morte da mãe, Priscila retorna à ilha após se meter em uma confusão com a polícia.
Priscila busca abrigo na casa paterna, mas o conservador Samuel não tem nenhum entusiasmo ao recebê-la. Até aceita que ela fique ali por uns tempos, mas desde que não se maquie, que corte os cabelos e que fique trancada em casa quando seus companheiros de pesca aparecerem por ali.
O roteiro tem fragilidades evidentes não é uma ideia das mais brilhantes buscar esconderijo na casa do pai quando se está sendo procurado pela polícia, por exemplo. E toda a parte envolvendo o assédio de um dos pescadores a Priscila é um equívoco. Mas o esquematismo sobre o qual tudo se estrutura é o que de fato incomoda.
Não é preciso ser nenhum Nostradamus para adivinhar o que acontecerá na sequência em dez minutos de filme já é possível intuir todo o percurso dramático pelo qual pai e filha passariam. Com um pouquinho de empenho, o espectador não teria sequer dificuldades de visualizar mentalmente a última cena, que acontece diante do mar, é claro.
Não se questiona aqui a relevância do tema e de se apresentar um retrato afirmativo trans, mas qual o sentido de se fazer um longa tão previsível e carente de novidades? Talvez a única informação surpreendente seja uma triste explicação para as cicatrizes nos pulsos de Priscila, que a princípio parecem sugerir tentativas de suicídio.
Mas felizmente o longa tem um outro elemento que o impede de ser um produto completamente sem identidade própria: o elenco. Não parecem atores profissionais, mas o desnível de registros acaba dando uma curiosa contribuição positiva para o filme.
Nathalia Rincón tem precisão em seus gestos, falas e olhares, e compõe uma Priscila que assegura voltagem às cenas. Já Roamir Pineda, intérprete de Samuel, fala sempre em um ou dois tons acima que os demais atores, como se estivesse prestes a berrar seja quando está com raiva da filha ou quando alguém se mete a lhe ensinar algo sobre o seu ofício de pescador.
É uma “inadequação” de performance que enriquece o personagem, porque sua gritaria parece surgir como uma resposta sempre genuína, e não ensaiada, de um homem que se tornou quase um eremita e que já não tem muita paciência com os demais e que carrega uma enorme amargura pelos abandonos que sofreu.
O grande destaque, porém, é Roosevelt Rafael González, no papel do tio de Priscila, um homem bronco, mas com o coração de ouro seu cérebro certamente não entende muito bem as motivações da sobrinha, mas algo dentro de seu peito o faz acolhê-la, sem maiores questionamentos.
Quando ele intercede por ela diante de Samuel, o faz com um semblante sério, de alguém que quer passar firmeza, mas existe uma indisfarçável doçura naquele pescador há uma camada extra de comicidade e de afeição nesse jeito de atuar que tornam o personagem o mais carismático do filme. O trio ajuda a tornar o longa cativante, apesar de suas limitações.
A FILHA DO PESCADOR
Avaliação Bom
Classificação 14 anos
Elenco Modesto Lacen, Henry Barrios, Jesús Romero
Produção Brasil, Colômbia, Porto Rico, República Dominicana, 2023
Direção Edgar Alberto Deluque Jacome
BRUNO GHETTI / Folhapress