‘A literatura salva a gente da úlcera’, diz Eliana Alves Cruz em debate na Casa Folha

PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – Episódios traumáticos no primeiro semestre de 2020 ajudaram a impulsionar a romancista Eliana Alves Cruz para a criação de “Solitária”, livro sobre duas empregadas domésticas negras que moram na casa de uma família em um condomínio de luxo.

Como a autora contou no debate da Casa Folha nesta sexta (24), as sucessivas mortes de trabalhadoras domésticas em decorrência da Covid-19 a partir de março de 2020 a deixaram chocada. “Nas lives, eu via artistas fazendo churrasco e dava para ver as empregadas ao fundo. Ou seja, elas estavam se expondo ao risco”, afirmou. “Não se percebe o quanto há de escravocrata em atitudes assim?”

O segundo momento que a assombrou foi a morte de Miguel, de 5 anos, em junho daquele mesmo ano. Para quem não se lembra, o garoto caiu do nono andar de um prédio de luxo de Recife depois de ter sido deixado pela mãe, uma trabalhadora doméstica, aos cuidados da então patroa dela.

“A literatura salva a gente da úlcera”, disse a romancista depois de lembrar essas duas passagens de três anos atrás. A indignação com os acontecimentos foi transformada em ficção em “Solitária”, publicado em 2022.

Alves Cruz participou do evento ao lado de Alexandre Vidal Porto, que acaba de lançar “Sodomita”, romance que se baseia na história real do português Luiz Delgado, trazido para a Bahia em segredo depois de se envolver com um jovem. A mediação do debate ficou a cargo de Walter Porto, editor de livros da Folha de S.Paulo.

Na nova obra, Vidal Porto leva o leitor ao passado do Brasil, em especial para o século 17, assim como Alves Cruz fez em publicações anteriores, como “Água de Barrela”, de 2016 e “O Crime do Cais de Valongo”, de 2018.

A invisibilidade da população negra nos relatos históricos do país motivou, em grande parte, as incursões ficcionais da autora. “Minha família era invisível, eu não a via retratada. Então resolvi seguir o conselho [da escritora americana] Toni Morrison, eu queria ler esse livro e, como não existia, decidi escrevê-lo.”

Dentro da Casa Folha, que acontece num imóvel de arquitetura colonial no centro de Paraty, Alves Cruz comentou: “Quando vejo essas pedras, eu fico pensando: quem fez o rejunte? Quem construiu essa casa?”, se referindo ao trabalho escravo.

No caso de Vidal Porto, autor de obras como “Sérgio Y Vai à América”, de 2014, a tentativa de apagamento de diversas formas de diversidade buscada pelo bolsonarismo foi determinante para que ele escrevesse “Sodomita”. Lembrar um episódio de um passado tão longínquo “era minha forma de dizer que nós [os homossexuais] estamos aqui desde sempre”.

No final da mesa, diante de uma pergunta de um espectador sobre imigrantes vindos da Europa e descendentes de escravizados, Alves Cruz lembrou o cotidiano do seu filho no Rio de Janeiro.

“Quando ele sai de casa, não sei se vai voltar. Sempre falo para que não esqueça a identidade porque pode ser parado pela polícia, para que não ande sem camisa e outras coisas. Minhas amigas brancas não têm que se preocupar com isso.”

Vidal Porto se encarregou do desfecho. “O legado da escravidão nos une a todos. Temos um país em comum para construir.” E, de olho no público majoritariamente branco presente no espaço, arrematou: “Precisamos ter empatia e entender que o mundo não é o espelho da gente.”

NAIEF HADDAD / Folhapress

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