SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) – A imagem de um papa não se esculpe apenas com palavras. Tecidos, gestos, silêncios tudo conta. Francisco, ao recusar o vermelho de Prada, os bordados dourados, o trono elevado, redefiniu o rosto da autoridade católica. A sobriedade tornou-se seu selo. Agora, às vésperas do conclave que elegerá seu sucessor, uma pergunta ecoa no ar: o que vestirá o próximo papa?
Filippo Sorcinelli, aos 50 anos, compreende como poucos o significado profundo por trás dessa pergunta. Mais do que um simples questionamento sobre estilo, para o fundador do ateliê litúrgico Lavs trata-se de uma reflexão sobre identidade e mensagem. Durante um quarto de século, suas mãos moldaram as vestimentas que vestiram papas, cardeais e as mais solenes celebrações da Igreja. Seu trabalho – discreto mas fundamental – está entrelaçado com os pontificados de Bento XVI e Francisco.
Agora, num movimento que parece ter sido guiado pelo destino, Sorcinelli decidiu virar essa página. “Este ciclo se encerrou para mim com o sepultamento do papa Francisco. Foi uma sensação visceral”, revelou o italiano que nesta manhã recebeu o UOL.
Curiosamente, o encerramento dessa fase coincide com a exposição que preparava para a Pinacoteca Ambrosiana de Milão, entre 15 e 27 de maio. O que começou como uma retrospectiva de carreira transformou-se em despedida. A mostra, que entrelaça vestes sagradas com perfumes – sua outra grande paixão -, ganha novos significados. Cada paramento exibido dialoga com uma fragrância especialmente criada por ele: “como se cada aroma fosse capaz de revelar o que as vestes apenas sugerem”.
Sorcinelli, agora fora da cena litúrgica, segue adiante. Mas deixa um aviso, com a precisão de quem vestiu o poder: a roupa fala. E no caso do papa, ela pode definir como o mundo enxerga a fé.
FRANCISCO USAVA TRAJES SIMPLES, NÃO “TRAPOS”
Francisco, para Sorcinelli, encarnou uma “nobre simplicidade”, eco do Concílio Vaticano II. Desde o início, o papa argentino buscou trajes simples. “Não trapos”, ressalta o estilista, “mas vestes belas e despojadas, que comunicassem essência. Tirar também é um valor.” O problema, segundo ele, é que essa simplicidade foi muitas vezes mal interpretada. “Francisco nunca quis roupas feias. Quis roupas simples e belas.”
Esse “curto-circuito estético” teve seu peso simbólico: sapatos pretos no lugar do vermelho papal, cruz de ferro no lugar do ouro, batina sem a mozeta carmesim. Mas Sorcinelli temia que, ao despir demais, a imagem do papado perdesse força. “O paramento litúrgico comunica. Se você o esvazia, sobra um trapo. E para honrar a Deus, não se veste um trapo.”
A comparação com Bento XVI é inevitável. Enquanto Francisco optou pela horizontalidade, Ratzinger manteve uma estética barroca, vertical, carregada de história. Sorcinelli recorda que, na segunda metade de seu pontificado, Bento cedeu à nostalgia litúrgica de alguns colaboradores, abandonando a inovação em favor de modelos antigos. “Criaram um muro visual lindíssimo, mas que bloqueou o diálogo com o mundo.”
O erro, para ele, não foi o luxo, mas a desconexão com o tempo. “As nações mais distantes da Igreja já não viam o Papa. Viam um anacronismo.”
EXPECTATIVA DO PÚBLICO É OUTRA E TRAJES TAMBÉM DEVEM SER
E agora, o que virá? Retroceder, diz Sorcinelli, seria fácil. “Talvez facílimo.” Ele desmitifica a ideia de Francisco como revolucionário. “Foi um artesão. Manteve a substância, mudou o ritmo.”
Mas algo mudou de fato: a expectativa do público. O papa, como um rei inglês, carrega o fascínio da cerimônia, da encenação do sagrado. Porém, o próximo pontífice precisará equilibrar o mistério com a demanda por proximidade. “O papa não pode ser apenas um homem entre o povo. Precisa ser também sinal do invisível.”
A moda, até no Vaticano, segue o tempo. “Os paramentos são belos porque despertam curiosidade, porque são diferentes. Mas aproximar demais essa fronteira pode ser perigoso.”
JANAINA CESAR / Folhapress
