SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Abdias Nascimento se dizia “boi de piranha” porque se mostrava disposto em ver as suas propostas antirracistas serem engolidas no Congresso, para assim abrir caminhos para as demandas da população negra.
“Ele sabia muito bem que as atitudes que ele tomava não seriam bem aceitas por uma sociedade brasileira que vinha há décadas negando a sua própria natureza racista”, afirma Elisa Larkin Nascimento, viúva do intelectual morto em 2011.
Ao longo de sua vida, Abdias defendeu que a atuação política era um caminho para a luta contra o racismo. Ele afirmava que era necessário negros ocuparem espaços de poder, pois sem a participação deles não existiria democracia de verdade.
Filho de um sapateiro e de uma doceira, ele nasceu em Franca, no interior de São Paulo, em 1914. Na juventude, formou-se em contabilidade e foi soldado do Exército, atuando nas Revoluções de 1930 e 1932.
Abdias foi jornalista e ator antes de entrar na política. Exerceu a função jornalística ainda no quartel, ao ajudar a fundar o jornal O Recruta. Depois, nos anos 1940, escreveu no Diário Trabalhista, onde tinha uma coluna chamada Problemas e Aspirações do Negro.
Em 1944, fundou o Teatro Experimental do Negro, um coletivo de atores negros de onde saíram nomes como Léa Garcia, Ruth de Souza e Haroldo Costa.
Segundo Edilza Sotero, socióloga e professora de sociologia da educação na UFBA (Universidade Federal da Bahia), apesar de o primeiro mandato de Abdias ter sido só nos anos 1980, ele ingressou na política nos anos 1940.
Nesse contexto, ele começou a se articular para ser um dos porta-vozes do movimento negro. “A base de sustentação política do Abdias sempre foi a busca por um discurso voltado para resolver os problemas da população negra”, afirma Edilza Sotero.
A primeira vez que o intelectual se candidatou foi na eleição de 1946 pelo PRD (Partido Republicano Democrático), sigla então recém-fundada na esteira do trabalhismo.
A base da sua campanha saiu de um documento lançado pelo movimento negro, em 1945, durante a Convenção Nacional do Negro Brasileiro.
Intitulado “Manifesto à Nação”, o documento reconhecia que o Brasil foi formado por três grupos étnicos: negros, brancos e indígenas. Também demandava tornar crime o preconceito de cor, como era chamado na época, além de apresentar pontos para a solução dos problemas sociais que atingiam os negros e a população brasileira como um todo.
Em 1952, ele concorreu ao cargo de vereador pelo Distrito Federal, que na época era o Rio de Janeiro. A sigla a qual ele se candidatou foi o PST (Partido Social Trabalhista), mas não se elegeu.
“Sua campanha foi a primeira no Brasil a desenvolver uma estratégia racializada, o que pode ser verificado pelo slogan usado na época: ‘Não vote em branco, vote no preto’ “, afirma Márcio Macedo, professor de sociologia e coordenador de diversidade da FGV EAESP.
Em 1968, Abdias foi aos Estados Unidos para participar de uma conferência. Naquela época, o Brasil vivia a ditadura militar. O intelectual, então, decidiu ficar no país. O autoexílio, como ele dizia, durou 13 anos.
Foi no exílio que Abdias conheceu Leonel Brizola, dando início a uma parceria que atravessaria toda sua carreira política. “É importante reconhecer que Brizola foi o primeiro político de projeção nacional e internacional que levou a sério a questão racial”, afirma Elisa, viúva de Abdias.
Ainda durante o autoexílio, Abdias esteve envolvido na fundação do PDT (Partido Democrático Trabalhista), cujo principal articulador foi Brizola.
Segundo Elisa, Abdias colocou a luta de combate ao racismo como prioridade nacional da nova sigla. “Mais do que isso, ele dizia que não bastava colocar no estatuto do partido, era necessário que os próprios negros se organizassem e definissem os posicionamentos partidários sobre o assunto.”
De 1983 a 1987, Abdias assumiu a cadeira de deputado federal pelo PDT-RJ, como suplente. “Ele se tornou o primeiro deputado negro a levar uma agenda estruturada em torno dos direitos humanos e civis da população negra”, afirma Márcio Macedo.
Segundo o professor, Abdias foi pioneiro e, de forma indireta, contribuiu para a criação da atual bancada negra na Câmara dos Deputados, que foi aprovada no início deste mês.
De acordo com Elisa, a ideia de se criar uma bancada não é nova. Desde a época de Abdias já se trabalhava a ideia de juntar os parlamentares negros para pensar atuações.
Em 1997, Abdias voltou ao Senado, em caráter definitivo, após a morte de Darcy Ribeiro.
Durante sua atuação parlamentar, ele apresentou propostas de políticas públicas voltadas ao combate ao racismo e à igualdade racial.
“Na Câmara e no Senado, sua missão era pedagógica no sentido de expor e registrar as diversas dimensões da questão racial para um conjunto de colegas que pouco sabiam e menos queriam aprender a respeito”, escreve Elisa Larkin no livro “Abdias Nascimento, a Luta na Política” (editora Perspectiva).
Ao assumir a cadeira no Parlamento, nos anos 1980, sua primeira proposta foi a criação da Comissão do Negro, com o objetivo de levantar informações sobre a descriminação racial no país e, assim, apresentar políticas de reparação. O projeto foi arquivado anos depois.
Outra proposta foi a “ação compensatória”, ligada ao conceito de reparação.
“Porque a compensação inclui o fundo histórico do fato de uma população ter sido escravizada, ter tido o seu acesso absolutamente negado às várias formas de atuação dentro de uma sociedade, seja no acesso à educação, ao mercado de trabalho, na própria habitação, ao serviço de saúde, ou de todas essas questões, durante séculos”, afirma Elisa.
Uma dessas ações propostas foi o ensino da história africana e afro-brasileira nas escolas, que, anos depois, teve como marco a Lei 10.639.
Abdias também defendeu as políticas de cotas. No mercado de trabalho, ele propôs a reserva de 20% das vagas para mulheres negras e 20% para homens negros na seleção de candidatos no serviço público e no setor privado.
Nesse momento, Abdias também apresentou projeto de lei para criminalizar o racismo, definindo-o como um crime qualificado, de lesa humanidade e inafiançável.
Abdias pautou a necessidade de pensar a memória da população negra.
“No mesmo ano que Abdias se torna deputado, ele participa de uma marcha no Rio de Janeiro com Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, entre outras pessoas, demandando que Zumbi fosse considerado um símbolo da luta negra”, afirma a socióloga Edilza Sotero.
Apesar de conseguir aprovar alguns de seus projetos em comissões técnicas, a grande maioria não chegou a ser votada em plenário. Essas e outras propostas de Abdias só se tornaram agenda política no século 21, depois que outros arranjos políticos se fizeram.
Para Elisa, é difícil dizer com exatidão o que fez com que Abdias não desistisse diante de tantos projetos que não foram aprovados.
“Eu acho que ele tinha um compromisso e uma experiência desde criança, muito enraizada, que o levava à convicção da absoluta necessidade dessa luta e da justeza dessa causa. Acho que quando se acredita no ser humano sempre se terá a esperança que a justiça prevaleça”, afirma.
“Acho que no fundo era uma fé, uma confiança, um acreditar mesmo no ser humano, que o levava à frente”, conclui.
Raio X | Abdias Nascimento
Nasceu em Franca, no interior de São Paulo, em 14 de março de 1914. Foi um dos maiores ativistas do movimento negro no Brasil. Na juventude, formou-se em contabilidade e foi soldado do Exército. Além de ativista foi poeta, artista plástico, jornalista, ator e político brasileiro. Em 1944, fundou o Teatro Experimental do Negro. Iniciou a carreira parlamentar, em 1983, como deputado federal. Em 1991 e 1997, foi senador. Morreu em 2011, aos 97 anos.
PRISCILA CAMAZANO / Folhapress