PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – A conferência de abertura da Flip, com o escritor e professor Luiz Antonio Simas, na noite desta quarta-feira (9), em Paraty, eletrizou o público com uma aula sobre a vida e a obra de João do Rio –dando um tom festivo ao evento literário, um ano depois de uma edição marcada por viés acadêmico.
A fala do professor foi uma celebração das culturas centradas na rua e da herança africana no Brasil. O que não deixou de ser um recado a um evento literário conhecido por suas festas fechadas e preços proibitivos –neste ano, contudo, a Flip realizou uma roda de samba na praça após a abertura.
Com retórica envolvente, Simas começou sua aula contando uma narrativa mítica sobre Exu, cantando uma canção em celebração orixá, que dizia “nós saudamos o senhor dos caminhos”. “Queria trazer Exu para a Flip para que ele conduza nosso caminho e abra Paraty para a festa”, disse ele, que falou em pé e arrancou aplausos e burburinhos do público em diversos momentos.
Estava dada a tônica para um aula que falou sobre a herança africana na história do Brasil e as tentativas, no começo do século 20, de embranquecimento do país –com um apagamento cultural.
Simas, que também é babalaô no culto de Ifá, relembrou os anos de modernização urbana no Rio de Janeiro do começo do século passado, testemunhados e descritos por João do Rio em sua obra. “Essa cidade, num certo momento, resolveu que precisava ser francesa para negar que era profundamente africana”, afirmou.
O escritor lembrou ainda como o autor homenageado viu uma cidade marcada por culturas de diáspora –não só a africana, mas também a cigana e a judaica. “Toda cultura de diáspora reconstrói aquilo que foi aniquilado. Por isso não existe cultura de diáspora centrada no indivíduo. Todas elas se fundamentam na ideia de que a vida é um exercício coletivo de invenção do mundo.”
Simas não se esquivou das contradições de João do Rio e encarou temas que, se ignorados, com certeza gerariam críticas à Flip, como o olhar racista que o autor homenageado dispensa aos africanos que viviam na capital do país na sua época.
É caso do clássico “As Religiões do Rio”, no qual ele se refere a mães de santo como feiticeiras, em tom pejorativo, e descreve os negros que viviam na cidade de forma animalesca.
“João do Rio vivia entre o fascínio e o temor, o assombro com o que via e a atração irresistível”, disse Simas, que se confessou incomodado com esses trechos da obra do escritor. “Não foi imune ao seu tempo”, acrescentou, lembrando a condição de homem negro do João do Rio, que foi impedido de seguir carreira diplomática por isso.
Apesar das críticas, ele defendeu a atualidade da obra do autor, que tratou a quente das contradições da modernização do país –com temas como o desaparecimento de profissões, o trabalho informal, a participação política das mulheres e o sistema carcerário.
“Ele trata de dilemas do Brasil que estão aflorados, num país em que chamamos de intolerância religiosa o que deveria ser chamado de racismo religioso”, disse Simas.
O historiador fez, ainda, uma provocação à plateia da Flip: “Será que nós que estamos aqui não consideramos essas culturas de rua incômodas ou, com muita boa vontade, pitorescas? Ou será que é uma concessão pitoresca de um certo Brasil em que imaginamos haver uma construção consensual a respeito da identidade?”.
A conclusão de sua conferência foi uma defesa do caráter político do ato de festejar e das manifestações culturais que constroem a coletividade. Ele contou, por exemplo, um mito sobre a origem do primeiro tambor do mundo.
“Os muxicongos dizem que a humanidade é filha do tambor”, afirmou. “Beto Sem Braço dizia que o que espanta a miséria é a festa. A miséria afetiva, a miséria espiritual, a miséria afetiva e por que não a miséria econômica? Estamos abrindo caminho, botando o padê para Exu, chamando João do Rio.”
Depois da abertura, aí sim, o povo tomou a praça aberta para o Samba da Bênção, que envolveu de acordes o espaço onde a palestra era exibida pelo telão. Os sete músicos animaram centenas de pessoas com canções de Djavan, Jorge Aragão, Nei Lopes, Monarco, Zeca Pagodinho.
O público pareceu até incomodado com as cadeiras dispostas para assistir ao show, ampliando os estreitos corredores onde mal dava para ficar de pé entre as fileiras, remexendo corpo para lá e para cá. Afinal, como disse Simas, morto é quem está vivo e não dança.
FLIP EXIBIU VÍDEO PERDIDO DO VELÓRIO DE JOÃO DO RIO
Antes da aula de Simas, a Flip exibiu um vídeo perdido do velório de João do Rio, em 1921. O evento mobilizou, segundo relatos, cerca de 100 mil pessoas pela cidade –o que dava dimensão da importância do escritor naquele início de século.
O vídeo foi encontrado pelo pesquisador Antonio Venâncio, que revelou em 2019 tê-lo encontrado. Mas a gravação em si nunca veio a público. Os registros mostram multidões nas ruas do Rio, seguindo o cortejo fúnebre do autor.
“É muito emocionante, porque conseguimos ter ideia do que é uma cidade emocionada com a morte de um escritor”, disse a curadora da Flip, Ana Lima Cecilio.
MAURÍCIO MEIRELES / Folhapress