Abin sob Bolsonaro monitorou Covid em fronteiras, presídios e criticou Trump

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Relatórios elaborados pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência) durante a pandemia mostram monitoramento e alertas sobre o impacto do avanço da Covid-19 em diversos setores, enquanto o presidente Jair Bolsonaro (PL) tratava a crise sanitária com desdém.

Os documentos avaliam, por exemplo, a crise nas fronteiras do Brasil e terras indígenas e o impacto causado por restrições de mobilidade na pandemia em rotas de droga e atividades de facções criminosas.

Os agentes criticaram a gestão de Donald Trump nos Estados Unidos, político que foi uma das referências de Bolsonaro para definir a resposta do governo brasileiro à doença e apostar na cloroquina, droga sem eficácia contra a Covid-19.

Como a Folha revelou, Abin e GSI (Gabinete de Segurança Institucional) elaboraram mais de 1.100 relatórios —mantidos em sigilo no governo Bolsonaro— para alimentar discussões do comitê de ações sobre a pandemia que era coordenado pela Casa Civil. Integrantes da gestão passada dizem que os papéis geralmente chegavam às mãos de assessores de poucos ministros.

Procurado, o ex-presidente não se manifestou sobre o assunto.

Os documentos mais longos e detalhados sobre a Covid, em geral, foram preparados por agentes da Abin nos primeiros meses da crise sanitária. Enquanto os arquivos do GSI, que aparecem com mais frequência a partir de junho de 2020, são sintéticos e mostram projeções de casos e óbitos.

Em 24 de março de 2020, agentes da Abin disseram que Trump inicialmente “minimizou a gravidade do surto e tomou medidas limitadas para enfrentá-lo”.

O mesmo documento afirmou que os EUA demoraram para promover o distanciamento social. “As medidas de contenção revelaram-se, em muitos casos, tardias, tendo tido, até o momento, eficácia limitada na mitigação da contaminação comunitária do vírus e no achatamento da curva de casos.”

Outro arquivo, de 8 de abril, analisou a aprovação política do ex-presidente americano diante do avanço da Covid. Os agentes disseram que “os índices de aprovação do presidente Donald Trump sofreram poucas alterações, com leve tendência de alta”.

O relatório ainda afirmou que opositores do então presidente criticavam a demora do governo americano em agir na pandemia, o que “teria prejudicado o controle precoce da doença e potencializado sua disseminação”.

O mesmo documento disse que não era possível estimar os impactos da crise sanitária nas eleições presidenciais “ou indicar tendências de resultado”. Trump foi derrotado em novembro por Joe Biden.

A Abin também alertou o governo Bolsonaro do avanço da doença nas fronteiras.

Em 30 de abril, os agentes citaram que havia estrangeiros retidos nas entradas por terra do Brasil ou que desejavam retornar aos países de origem.

Este documento detalhou a crise em sete cidades de fronteira das regiões Norte, Centro-Oeste e Sul. Os agentes afirmaram que a tendência era de “agravamento do colapso do sistema” em Tabatinga, Amazonas, caso a estrutura para atendimento do município não fosse aprimorada.

Em relatório de 7 de maio, a Abin disse que havia “denúncias” de “corrupção armada” do Paraguai para liberar a passagem na Ponte Internacional da Amizade, em Foz do Iguaçu, Paraná.

Bolsonaro defendeu, à época, a abertura da fronteira terrestre com o Paraguai, o que foi recusado pelo governo vizinho por medo de circulação da Covid-19.

“Estamos dispostos a abrir [a fronteira], até porque é filosofia nossa. É uma realidade, estamos perdendo vidas, sim. Mas não tem de ter pânico, lamentar. [Vamos] fazer o possível para diminuir o número de óbitos”, declarou Bolsonaro em 26 de maio.

Militares ocuparam postos-chave do governo Bolsonaro no combate à pandemia. Os generais da reserva e ex-ministros Augusto Heleno (GSI), Braga Netto (Casa Civil) e Eduardo Pazuello (Saúde), foram questionados pela Folha sobre os relatórios, mas não quiseram se manifestar. Ex-chefe da Abin e atualmente deputado federal, Alexandre Ramagem (PL-RJ) também não respondeu.

O governo também foi alertado do avanço do garimpo e do desmatamento durante a pandemia.

“A crise relacionada à pandemia de Covid-19 conforma contexto potencialmente mais propício às ações de desmatamento, no que concerne à capacidade repressiva estatal, considerando que recursos humanos e materiais do Estado estão empregados, prioritariamente, no tratamento da situação de saúde”, afirmou documento de 11 de maio, cujo conteúdo foi revelado pela Agência Pública.

O mesmo relatório disse que havia indícios de expansão do garimpo ilegal na Amazônia e que indígenas poderiam ser contaminados por quem trabalha na área.

Alguns informes de inteligência se basearam em dados de instituições atacadas por Bolsonaro, como a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). Em 18 de maio, a Abin apontou 103 indígenas mortos pela Covid-19, citando a entidade.

“De acordo com a Apib, a expansão do Sars-Cov-2 entre a população autóctone é preocupante, uma vez que a falta de anticorpos das etnias e a ausência de infraestrutura de atendimento poderiam dizimar populações inteiras”, disse o documento.

Em 11 de fevereiro de 2021, relatório sobre insumos hospitalares no Amazonas disse que alguns indígenas na região do Vale do Javari, “onde há grande influência de evangélicos”, estavam se recusando a receber a vacina contra a Covid.

Os documentos mostram que a Abin chegou a monitorar impacto da pandemia na atividade de grupos criminosos dentro de presídios.

Informe de 11 de maio de 2020 apontou intenção do Comando Vermelho de ampliar a “influência no cenário criminal amazonense, bem como eliminar lideranças rivais”.

“Há riscos de realização de massacres em unidades prisionais e de elevação rápida dos níveis de violência nas principais cidades do estado, que já vive processo de saturação das estruturas estatais em função da pandemia da Covid-19”, disse o documento.

O avanço da doença no sistema prisional preocupou a Abin. Os agentes elaboraram relatório de seis páginas sobre o tema em maio de 2020, afirmando que o avanço de casos poderia elevar os registros de rebeliões e fugas.

A agência de inteligência percebeu ainda mudanças na rota da cocaína do Peru ao Brasil por causa das restrições de mobilidade impostas por governos. Relatório de abril de 2020 afirmou que a região Norte brasileira passou a ser “alternativa para narcotraficantes concentrarem suas rotas”.

O setor de inteligência ainda monitorou manifestações pró e contra Bolsonaro.

Um documento de 17 de abril de 2020 da Abin disse que havia protesto “de intervenção militar e em apoio ao presidente da República” marcado para os dois dias seguintes. O documento narra que havia divisão entre os bolsonaristas —parte convocava para carreatas, enquanto outros grupos queriam manifestações em frente aos quartéis.

Bolsonaro discursou em frente à sede do Exército, em Brasília, no ato golpista de 19 de abril daquele ano, quando disse que “acabou a época da patifaria”, “agora é o povo no poder” e “não queremos negociar nada”. A Abin ainda monitorou protestos de caminhoneiros e de trabalhadores de setores como a saúde e segurança pública.

MATEUS VARGAS / Folhapress

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