SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A gravidez de Ana (nome fictício), 10, de São Paulo, foi descoberta no banho quando a menina percebeu que saía leite dos seus seios e gritou pela mãe. Foi aí que o estupro praticado pelo padrasto veio à tona. A gravidez passava de 22 semanas.
Com Julia (nome fictício), 12, de Minas Gerais, a mãe percebeu o atraso menstrual e levou a filha ao pediatra do plano de saúde. O médico questionou se havia chance de gravidez, e a mãe descartou a hipótese já que a menina não saía de casa sozinha.
A cena se repetiu por quatro vezes sem que a garota fosse sequer examinada. Até que a mãe, temendo se tratar de um tumor, pediu um ultrassom de abdome, que confirmou a gravidez de 28 semanas. O padrasto confessou o estupro, prestou depoimento, foi liberado e fugiu da cidade.
Essas histórias, relatadas por profissionais de saúde, ilustram um perfil frequente de crianças vítimas de estupro que buscam os serviços de aborto legal com gravidezes acima de 22 semanas. Entre as mulheres adultas, a maioria vivendo em áreas remotas e/ou em situação de vulnerabilidade, há casos de estupro, de malformações fetais e de situações que ameaçam a vida.
Segundo profissionais que atuam em serviços de aborto legal, gravidezes acima de 22 semanas representam cerca de um terço das interrupções previstas em lei e que agora estão sob ameaça do projeto de lei 1904, que abre margem para vetar qualquer procedimento de aborto acima dessa idade gestacional e que equipara o procedimento ao crime de homicídio simples, com pena que pode chegar a 20 anos.
A proposta foi protocolada em meio a uma disputa do CFM (Conselho Federal de Medicina) em torno de uma resolução que proibiu a realização de um procedimento essencial para a realização de abortos tardios de gravidezes resultantes de estupro. No momento, a norma está com os efeitos suspensos por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).
“Esse PL consegue ser pior do que a resolução. A gente entende que ele proíbe todos os abortamentos acima de 22 semanas, inclusive os por malformações incompatíveis com a vida, como a anencefalia”, diz Olimpio Moraes, diretor médico do Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, ligado à UPE (Universidade de Pernambuco).
Ele explica que quase a totalidade do diagnóstico dessas malformações são tardios, acima de 20 semanas, e aumentam o risco de complicações na gravidez.
“Será uma tortura para essas mulheres que serão obrigadas a manter essa gravidez para depois comprarem um caixão para enterrar seu filho. Esses deputados estão interferindo numa área que não conhecem, baseados em crença religiosa, distante da ciência e da bioética.”
Não há dados sistematizados que mostrem o número de interrupções realizadas acima de 22 semanas no Brasil. De acordo com informações do Ministério da Saúde, por ano, são realizados, cerca de 2.000 abortos legais. Destes, estima-se que cerca de 600 sejam feitos após o período.
Segundo a Folha apurou em dois serviços de saúde, as interrupções acima dessa idade gestacional somaram em média 250 casos no ano passado.
“A gente não tem um sistema, como o Datasus, que permita fazer essa pesquisa. E não se tem isso de propósito. Os governos não querem visibilizar essa situação”, diz a ginecologista e obstetra Helena Paro, do Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual, na UFU (Universidade Federal de Uberlândia).
No serviço de aborto legal do Recife (CE), os estupros respondem por metade dos abortos legais acima de 22 semanas. Já no serviço de Uberlândia, eles representam mais de 90%.
Segundo Olímpio Moraes, a maioria das interrupções tardias acontece antes das 25 semanas de gestação. “Só ultrapassam quando médicos, que infringem o Código de Ética Médica, obstruem esse direito.”
No país, apenas 200 dos mais de 5.500 municípios, ou 3,6%, oferecem serviços de aborto legal em suas redes de saúde. Na avaliação dos profissionais de saúde, essa é uma das razões que levam à necessidade de abortos legais acima de 22 semanas.
“O fato de não ter serviços nas cidades dessas meninas e mulheres faz com que esse tempo gestacional vá se prolongando. O atraso também acontece por falta de informação dos profissionais de saúde que não orientam essa mulher ou menina e querem obrigá-las a manter a gravidez”, diz Paro.
A médica afirma que existem vários motivos documentados na literatura médica que apoiam a necessidade do aborto acima de 22 semanas, inclusive a própria dificuldade de a criança reconhecer uma gravidez. “Ela está sendo violentada dentro de casa, a família geralmente só reconhece a gravidez quando há aumento do volume abdominal, o que acontece depois de 20 semanas.”
A psicóloga Daniela Pedroso, que atuou por 26 anos no serviço de aborto legal do Pérola Byington (atual Hospital da Mulher, do governo paulista), diz que, no caso de crianças até 14 anos, não há conhecimento do próprio corpo.
“Há dificuldade até de entender que aquilo que sofreu, em geral de um conhecido ou familiar, foi uma violência sexual e que resultou em uma gravidez.”
Um levantamento mostrou que, entre 2015 e 2020, mais de 9.000 meninas estupradas engravidaram no Brasil, mas só 362 conseguiram o direito ao aborto.
Pedroso conta que, no caso de crianças estupradas na faixa dos dez anos, costumava usar caixas de brinquedo nas sessões de terapia com essas meninas. “Têm carinhas de criança, corpo de criança e agem de acordo com a idade delas mesmo.”
No caso das mulheres adultas vítimas de estupro, explica a psicóloga, a gravidez é sentida como uma segunda violência e, por isso, às vezes, também há demora para ser reconhecida.
“Existe um mecanismo de defesa que é tentar esquecer o que aconteceu, elas se fecham e não contam isso para ninguém. Ela também não busca ajuda porque não sabe que tem esse direito.”
CLÁUDIA COLLUCCI / Folhapress