Ação de John Woo eleva ‘O Silêncio da Vingança’ a um belo filme B mudo

(FOLHAPRESS) – O chinês John Woo, como tantos imigrantes antes e depois dele, teve uma passagem atribulada pelos Estados Unidos. Ser cineasta em Hollywood pode ser um emprego dos sonhos, mas muitos artistas já caíram da cama tentando.

Woo, que volta ao circuito nesta quinta-feira com “O Silêncio da Vingança”, surpreendeu as plateias do Ocidente com seus filmes de ação rodados em Hong Kong no final dos anos 1980.

“Alvo Duplo”, de 1986, “O Matador”, 1989, “Fervura Máxima”, 1992, firmaram sua reputação como cineasta de olhar original, cuja destreza no uso de todos os recursos do cinema -movimentos de câmera, montagem, som- elevava às alturas filmes policiais de tramas muitas vezes simplórias.

Críticos passaram a usar a expressão “balé de balas” para se referir a ele. De forma espantosa, Woo alternava ritmos, acelerava e retardava cenas, encenava seus célebres tiroteios em câmera lenta, passava da carnificina ao lirismo e de novo ao banho de sangue em poucos segundos.

Extrema violência e inusitadas metáforas religiosas, como as constantes pombas brancas, se fundiam numa visão feérica e sombria sobre gângsteres e policiais. O novo filme, embora não seja tão forte quanto suas melhores obras, é um belo alento em uma carreira que parecia declinante.

Louvado pelas fãs do gênero, Woo chamou a atenção dos produtores americanos na década de 1990. Como quase sempre ocorre, viu-se em meio a um tiroteio para impor seu estilo no sistema industrial.

A “Outra Face”, de 1997, em que John Travolta e Nicolas Cage trocam de rosto e personalidade, ainda é seu melhor filme nos Estados Unidos, o mais bem-sucedido em conciliar as convenções de uma grande produção de estúdios e suas marcas autorais que driblam esses formatos, como uma certa indistinção moral entre mocinhos e bandidos e um pano de fundo sentimental.

“Missão Impossível 2”, de 2000, sua maior bilheteria da fase americana, talvez seja também o filme mais representativo de suas dificuldades de adaptação. Vários dos elementos recorrentes de Woo estão ali, mas surgem descaracterizados, vazios, quase pastiches de si mesmos, sem a imbricação profunda com o universo ficcional de seus melhores trabalhos em Hong Kong.

O filme era, afinal, um veículo para Tom Cruise, com uma história amorosa pouco convincente que emulava “Interlúdio”, clássico de Alfred Hitchcock.

Após algumas decepções e tropeços, Woo voltou ao cinema asiático. E eis que chegamos aos dias de hoje. Duas décadas depois, ele lança novamente um filme produzido em Hollywood, “O Silêncio da Vingança”.

O início já nos intrica, bem ao gosto do diretor, pela mistura estranha. Um solitário balão vermelho sobe ao céu, balas começam a ressoar ao fundo. Um homem com agasalho de bicho de pelúcia corre desesperadamente atrás de bandidos tatuados e de cara enfezada. Ao fim da perseguição, recebe um tiro na garganta.

Aos poucos, o quebra-cabeça começa a ser montado. O homem é pai de um garotinho que morre vítima de bala perdida no confronto entre duas gangues. Levado ao hospital se esvaindo em sangue, ele sobrevive milagrosamente, como o filme simboliza pela montagem e iluminação, mas perde a fala.

Disso resulta a principal audácia, já realçada pelo título: trata-se de um filme praticamente mudo -as poucas falas, no início, vêm de um programa de rádio. O que poderia resultar em um anacronismo estetizante, como o uso de preto e branco em certos longas com pretensão dita artística, tem efeito oposto. Permite a Woo criar o espetáculo pulsante que tanto aprecia.

Acompanhar o filme apenas por seu enredo é das experiências mais banais. Pela enésima vez, vemos um bairro tomado por bandidos malvados, sem qualquer individualização, polícia e estado ineficazes, um herói que só vê na vingança com as próprias mãos a chance de restabelecer alguma ordem.

A pobreza da trama, contudo, acaba por ser um trunfo nas mãos de Woo. Dispensando diálogos, reviravoltas, psicologia, ele salta, como em um daqueles belos rodopios de sua câmera, da insignificância para a sofisticação.

Tudo se narra em uma explosão de cores, formas, movimentos e corpos. Passado, presente e futuro do protagonista, a degradação de seu casamento e o crescente desejo de vingança surgem como que embalados em uma sensação de sonho, reais e fantasiosos ao mesmo tempo.

“O Silêncio da Vingança” é um exemplo do que antes se chamava filme B, produções de orçamento mais modesto, sem atores famosos e sem grandes perspectivas de retorno comercial. Talvez seja um sinal de decadência de Woo na indústria americana.

Mas o filme B, por todas as suas características, por estar menos subjugado a pressões dos produtores, também era o espaço de experimentações, de ousadias formais e temáticas. Aos 77, Woo fez um pequeno filme a seu modo, com a liberdade e o descompromisso que a maturidade pode oferecer.

Seguindo uma de suas manias favoritas, não se importa em interromper algumas vezes uma matança para tocar uma canção de trenzinho infantil. Mais uma vez, Woo trocou a lógica pela beleza.

O SILÊNCIO DA VINGANÇA

Avaliação Muito bom

Onde Em cartaz nos cinemas

Elenco Joel Kinnaman, Catalina Sandino Moreno, Kid Cudi

Produção EUA, 2023

Direção John Woo

MARCO RODRIGO ALMEIDA / Folhapress

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