Ações na Justiça para tratamento de crianças no SUS são mais inclusivas do que na rede privada

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A menina Lizzie, 1, de Cubatão (SP), tem alergia ao leite e só consegue se alimentar com uma fórmula infantil. Ela precisa de 12 latas por mês, que custam R$ 3.000, o equivalente à renda da família. Os pais entraram com ma ação judicial, e o estado de São Paulo foi obrigado a fornecer o alimento.

Já o Rafael, 9, tem diagnóstico de autismo severo desde dois anos. Diante da falta de profissionais habilitados no serviço indicado pelo plano de saúde, a mãe recorreu à Justiça, e conseguiu com que a operadora reembolsasse o tratamento em uma outra clínica, que custa em torno de R$ 10 mil por mês.

A realidade dessas duas crianças ilustram bem o atual cenário da judicialização da saúde infantojuvenil no estado de São Paulo, que tem perfil muito diferente a depender se a parte demandada é o SUS ou os planos de saúde.

O retrato foi traçado em estudo do Insper, que analisou 290 processos julgados pelo Tribunal de Justiça paulista entre 2011 e 2022 relacionados a petições na área da saúde que tinham na ponta demandantes crianças e adolescentes menores de 18 anos.

Entre os que acionam o sistema público de saúde, as ações são mais inclusivas. Há mais pretos, pardos e meninas, mais presença de defensores públicos e menos concentração de doenças e problemas que motivam a ação judicial.

Já quando se tratam de ações contra planos de saúde, a parte demandante tende a ser mais masculina, jovem e branca. Advogados privados também predominam (80% dos casos). Essas causas têm valor médio cinco vezes maior do que aquelas em que o SUS (Sistema Único de Saúde) é acionado.

Segundo os pesquisadores, o objetivo do trabalho foi investigar quais motivações estão na base da judicialização da saúde envolvendo o público infantojuvenil e entender o peso das desigualdades sociais nesse fenômeno.

De acordo com o trabalho, as três mais frequentes condições de saúde que motivam o litígio contra os planos de saúde são o transtorno do espectro autista (TEA), que responde por 51% das demandas, a epilepsia, com 6%, e o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), com 3%.

No caso do setor público, o padrão é mais heterogêneo. As demandas pedindo tratamentos para esses transtornos (TEA e TDAH) e para diabetes, por exemplo, representam, em cada caso, 10% das ações.

Segundo Vanessa Boarati, coordenadora do estudo e do núcleo de pesquisas em saúde pública do Insper, o grupo já imaginava que haveria diferenças em relação ao perfil de raça e de renda nas ações contra a saúde pública e a saúde privada.

Não esperava, porém, uma diferença tão grande em relação à proporção de doenças demandadas, o gênero e o caminho para o acesso à Justiça nas duas esferas.

“O autismo na saúde suplementar é muito significativo. Na saúde pública, as demandas são mais inclusivas, envolvem pessoas de menor renda e grupos sociais mais diversos.”

Ela afirma que ainda não é possível saber, por exemplo, por que o autismo aparece numa proporção muito maior nas ações contra os planos de saúde.

“Será que no SUS é subnotificado? Há pessoas que especulam que, ao ter diagnóstico de autismo, a pessoa contrata um plano de saúde [para demandar o tratamento que deseja via judicial], mas acho uma hipótese muito especulativa.”

Para a pesquisadora, a desigualdade de acesso a serviços de autismo e o estigma social também podem estar associados à menor proporção de crianças pretas e pardas diagnosticadas em geral, o que também pode refletir na judicialização de tratamentos.

De acordo com estudo, a atuação de tribunais nesses casos espelharia e replicaria desigualdades estruturais de acesso a diagnóstico e tratamento e não necessariamente amplia a política de saúde, pública ou privada.

“Crianças que têm mais acesso à saúde via saúde suplementar ganham causas mais caras para tratamentos mais complexos”, escrevem os pesquisadores.

Segundo Boarati, a próxima etapa do trabalho vai se aprofundar nessas demandas de autismo. “Estamos fazendo um mapeamento para saber o mais está sendo demandado. Quais os tratamentos que se pede? São deferidos, indeferidos? Quais os valores dessas causas?”

Para a pesquisadora, é importante desmistificar o tema da judicialização, que tende a ser visto na sociedade em geral como um bloco único, com grupos de maior poder socioeconômico se valendo dos tribunais para ganhar maior acesso a serviços e tratamentos.

“A judicialização da saúde é mais uma instância em que essas desigualdades se replicam. Condições sociais não são apenas causas de condições de saúde, mas causas das causas de condições de saúde, reduzindo oportunidades de acesso à informação sobre saúde.”

CLÁUDIA COLLUCCI / Folhapress

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