SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – São significativas as turnês em voz e violão de Adriana Calcanhotto. Em geral, essas apresentações ocorrem entre um projeto discográfico e outro, delimitando as diversas fases da obra da cantora e compositora gaúcha, sempre orientada por um desejo de subtração formal no processo criativo.
Do mesmo modo, o formato ressalta a musicalidade singular da artista, em um gesto de despojamento de todas as forças da cena que não repousem na sua presença. Mas agora será diferente. Em meio a turnê do álbum “Errante”, Adriana elaborou um show inédito, nomeado “Ultramar”, a ser apresentado, durante o mês de agosto, nas sedes do Blue Note, no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Nele, a compositora mostrará aos brasileiros a canção “Todo Sentido”, até então uma exclusividade da edição japonesa de seu último trabalho. “Pensei que seria um fiasco voltar a pegar no violão, mas eu gostei muito de tocar”, diz ela. “A verdade é que foi ótimo o convite. Se eu não tocar violão, eu não componho.” Se a simplicidade norteou a construção de suas canções, a ironia sempre representou uma possibilidade de leitura à sua obra.
Seu canto desdramatizado é, em potencial, um comentário irônico às letras trágicas. Loiríssima, Adriana surgiu no cenário musical, nos anos 1990, satirizando segmentos da sociedade brasileira, com um humor que se manifestava por meio da paródia e da autoderrisão.
O ineditismo do espetáculo se deve também à maneira como Adriana se relacionará, agora, com a plateia. “Não estou muito animada para ser irônica. As pessoas hoje estão muito literais e não compreendem a ironia”, afirma. Em quatro décadas de palco, a artista percebeu uma mudança no estatuto da forma canção no país.
Se no século 20 a música popular foi tida como a representação máxima da arte brasileira, agora os teóricos discutem se a canção morreu ou não. Afinal, os artistas preferem singles a álbuns e, segundo alguns especialistas, as novas gerações não atingem o mesmo nível de expressão poética que caracterizou os compositores durante o século passado. Há duas décadas, Chico Buarque já profetizava, em entrevistas, o fim da canção.
“Entendo o que Chico quis dizer. Acho que a canção da maneira como conhecemos não existe mais. Eu mesma me vejo, enquanto componho, passando logo para o refrão, porque as pessoas já não se interessam em ouvir uma introdução ou uma ponte. Ao mesmo tempo, algumas dessas músicas que tocam no TikTok e no Instagram são canções. A canção tem uma força impressionante”, diz Adriana, que dá aulas na Universidade de Coimbra, onde obteve o título de Embaixadora da Língua Portuguesa no mundo.
A artista inicia o novo projeto ainda impactada pelo drama do Rio Grande do Sul, assolado pelas enchentes que vitimaram mais de 180 pessoas. “Antes das chuvas já era um drama, eles não cuidavam das comportas, não se podia falar de educação ambiental. Aí, quando acontece o fato, falam ah, é uma tragédia'”, diz. “Fiquei revoltada, ouço tudo isso desde a infância.”
Desde o início da carreira, a artista mora no Rio de Janeiro, sua cidade do coração e, criança, já tinha o desejo de deixar Porto Alegre não por ter algo contra a capital gaúcha, mas por querer fugir do frio e aderir ao cosmopolitismo.
De todo modo, o mote do novo show é a composição “Ultramar”, escrita há duas décadas, no ano anterior ao lançamento do disco “Cantada”. Naquele momento, a cantora Fátima Guedes pediu uma letra a Adriana, enquanto Antonio Cicero esperava uma melodia para letrar. Nessa encruzilhada, Adriana resolveu dividir “Ultramar” Guedes ficaria com a letra, e Cicero teria a música. A parceria com o poeta daria origem a “Pelos Ares”, um dos sucessos da compositora que remonta àquele álbum.
Só que “Ultramar”, a obra original, ficaria de lado durante anos, até ser apresentada nessa nova turnê. A canção tematiza um “amor transatlântico”, alternando a palavra de cinco sílabas em dois acordes ré menor e sol menor, e reflete o fascínio pelo mar, presente em toda a obra da artista. Não por acaso, ela examinou o tema numa trilogia de discos, formada por “Maritmo”, “Maré” e “Margem”.
Nela, Adriana caracterizou o mar como uma projeção existencial da vida humana, lugar que pode dar e tirar a vida. É um pensamento que se relaciona com o livro “Água e os Sonhos: Ensaio sobre a Imaginação da Matéria”, de Gaston Bachelard.
Segundo o filósofo francês, o mar é um todo a que o homem não tem acesso. Por isso, é tão misterioso; sua matéria não existe, mas se derrama. Assim é a obra da compositora. Inapreensível, é “formless”, sem forma definida, como ela canta em “Lovely”, e se espraia em múltiplas linguagens e em um emaranhado de tendências opostas.
Adriana costuma dizer que toda canção inaugura e encerra, em si, uma realidade. Pois, no emaranhado de Bachelard, as canções são luminares que se distinguem, com letra e música, no todo indecifrável.
No mar, a artista encontrou todo sentido. “Ultramar” é um interlúdio de “Errante”, porque os dois repertórios são rios que desaguam no mesmo oceano, reunindo sucessos como “Vambora” e “Esquadros”. E ainda apresentam temas comuns, o mar e a errância.
Nos shows do disco “Errante”, ela usa um vestido feito de escamas de peixe. O espectador está diante, enfim, de uma sereia. Cultora da mitologia grega, Adriana se apresenta ao mundo ora apolínea, em uma contenção dramática, ora dionisíaca, quando, nos shows, roça a língua nas cordas da guitarra elétrica.
Contudo, Adriana exercita a experimentação em ocasiões especiais, como em seu show na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, ponto alto da edição passada. Para Adriana, a intimidade é um laboratório para o sucesso, reconhecido nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. Sua letra “Pelo Tempo Que Durar” figurou na cerimônia de encerramento, quando a chama da pira se apagava.
“Foi inesperado, estava em casa vendo pela TV e, de repente, tive aquele impacto imenso.” E foi sozinha que ela desenvolveu o seu violão, ao longo de décadas. “Agora você vai ver só como eu vou tocar”, diz ela, caindo na gargalhada.
ADRIANA CALCANHOTTO EM ‘ULTRAMAR’
– Quando Em São Paulo: 6, 13, 20 e 27 de agosto às 20he às 22h30; No Rio de Janeiro: 8, 15, 22 e 29 de agosto às 20h e às 22h30
– Onde Blue Note SP – Avenida Paulista, 2073; Blue Note Rio – Av. Atlântica, 1910
– Preço R$ 100 a R$ 320
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress