Adriana Calcanhotto une hit do TikTok a poeta alemão em seu novo álbum infantil

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Adriana Calcanhotto já se arrumou e está bonitinha. Com o novo figurino, um quimono supercolorido, de onde pululam dois corações bem grandões, além de vários bichinhos de pelúcia, a cantora e compositora encarna a versão 4.0 de seu heterônimo, Adriana Partimpim.

A personagem lança, às vésperas do dia das crianças, “O Quarto”, seu novo álbum para o público infantil, em comemoração às duas décadas desde o início do projeto discográfico.

No novo trabalho, Partimpim canta “to bem” -escrito assim, sem maiúsculas ou acento, como se fosse uma mensagem de WhatsApp-, hit do grupo curitibano Jovem Dionísio, que fez sucesso entre as crianças no TikTok. É aquela canção do “ah, cê reparou que eu me arrumei/ Ah, tô bonitinho.”

“Essa coisa dos tamanhos, do tempo de atenção, foi uma coisa que mudou nas crianças, e não só nas crianças. O tempo está mais rápido, e o disco é proporcional a isso”, diz Calcanhotto. “A canção ‘to bem’ me pegou por sua estranheza e tem um ritmo esquisito. É mais ou menos como são arranjadas as faixas agora. Se você não se comunicar em um segundo, alguém desiste de você.”

Produzido por Pretinho da Serrinha, “O Quarto” tem oito faixas e 22 minutos. Calcanhotto, no entanto, reconhece que suas canções sempre foram céleres, como uma interpelação aos ouvintes. “to bem” desconstrói o excesso eletrônico original, com o som do violão da artista. Ainda que o projeto Partimpim seja orientado pelas interpretações de outros autores, o heterônimo assina duas composições.

Entre elas, “Malala”, uma homenagem à ativista paquistanesa, perseguida pelo Talibã, que há uma década foi laureada com o Nobel da Paz. Em tempos de guerra no Oriente Médio, o samba é tocado com a categoria de Pretinho e a dramaticidade de Partimpim, emendando as sílabas do refrão em sucessivos glissandos.

Calcanhotto lembra que a composição surgiu quando seu heterônimo recebeu um convite para assinar algumas canções da peça “Malala, A Menina Que Queria Ir Para A Escola”. A faixa de abertura, “O Meu Quarto”, também foi criada por Partimpim. Para o disco, a canção soa como um verso pilar, como dizia o poeta Armando Freitas Filho, morto há duas semanas. Dali, surge todo o poema -ou o disco.

Trata-se de uma carta de intenções para os pequenos ouvintes, um convite para que todos possam inventar o mundo, com “cor, música e poesia”, para ser “bicho, planta, fantasia.”

“A infância é o território em que a gente sonha e não acha que as coisas são tão impossíveis. A gente vai perdendo muitas coisas com o tempo, como a capacidade de viver no presente”, afirma Calcanhotto. “Ela, a Partimpim, vive sempre o presente, o presente daquele disco, que está inserido naquele tempo.”

Com a infância, a artista atinge o ponto fulcral da poesia, que é instaurar uma nova realidade com as palavras. O projeto foi criado como uma alternativa à produção musical que, no início dos anos 2000, infantilizava as crianças. Partimpim era como o pai de Calcanhotto, um baterista de jazz, chamava a sua filha quando pequena -ela o chamava de Partimpai.

Do primeiro disco, que levou o nome dessa personagem, surgiu a gravação de “Fico Assim Sem Você”. A canção de Claudinho e Buchecha se tornaria tão famosa na nova roupagem, que passou a ter autoria atribuída a Partimpim.

Os volumes “Dois”, de 2009, e “Tlês”, de 2012, inscreveriam o repertório no imaginário de sucessivas gerações. Tanto que Calcanhotto se diverte ao ser abordada na rua por galalaus barbudos, que contam terem crescido com as canções.

Ela se filiava, então, à tradição da literatura brasileira. Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector dedicaram alguns livros às crianças. Nada em Partimpim, no entanto, indica um teor infantil. Calcanhotto diz ser difícil saber o que faz uma canção atrair o heterônimo.

“Eu me sentia subestimada na infância. Sentia que os disquinhos para crianças não eram feitos para mim. O público infantil é considerado um ente só, então falam que precisamos fazer canções alegres para elas, porque elas são alegres, sendo que isso não corresponde em nada com a realidade”, afirma Calcanhotto.

Em geral, o repertório Partimpim contém um aspecto lúdico, que se alicerça num olhar assombrado e reflexivo, como em “Por Que Os Peixes Falam Francês”, parceria de Domenico Lancelotti e Alberto Continentino, faixa incluída no “Tlês”.

Em “O Quarto”, “Os Funis”, poema do alemão Christian Morgesten, traduzido por Augusto de Campos e musicado por seu filho, Cid. “Dois Funis andam pelo escuro/ Através do seu fino furo/ Flui o leite da lua”, diz o poema. A aspereza à maneira concreta instiga a criatividade, com a imagem dos funis andantes.

Os objetos antilíricos contrastam com a delicadeza de “Estrela, Estrela”, de Vitor Ramil. “Ele é muito importante para mim, é muito talentoso, original, parece que ele inventou uma coisa. O Vitor é muito grande”, diz.

Antes de usar o figurino Partimpim, Calcanhotto quer vestir, bonitinha, um moletom e se enfurnar na biblioteca da Universidade de Coimbra, em Portugal, para onde voltará, em janeiro, após ter ministrado cursos e obtido o título de Embaixadora da Língua Portuguesa.

Agora, ela fará pesquisas sobre inteligência artificial e música. Calcanhotto diz não ter medo da tecnologia e afirma que comporia uma canção com o auxílio da ferramenta. Até a viagem, ela tem brincado com essa “novilíngua”. Outro dia, abriu o chat e uma pergunta do robô lhe tirou o sono. “Você já quis mudar o verso de uma canção, enquanto cantava?”, perguntou a máquina.

GUSTAVO ZEITEL / Folhapress

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