África muda como compreendemos as relações de gênero, diz Oyeronke Oyewumi na Flup

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – “Quando me perguntei o que era gênero, entendi qual era o trabalho que precisava fazer”, disse Oyeronke Oyewumi ao ouvir essa mesma pergunta no palco da Flup na noite desta quinta-feira.

Socióloga nigeriana reconhecida pelo seminal “A Invenção das Mulheres”, ela conversou com a holandesa Gloria Wekker com mediação da curadora Mame-Fatou Niang, na mesa que deveria ter aberto a programação internacional do Festa Literária das Periferias, mas precisou ser adiada por questões logísticas.

A mesa abordou a importância de repensar gênero e raça a partir dos próprios parâmetros das mulheres negras, sem passar pela legitimação das instâncias brancas e ocidentais.

Oyewumi lembrou que, ao começar seu trabalho de pesquisadora nos Estados Unidos, ouvia falar muito sobre as barreiras entre gêneros e sentia que havia alguma coisa errada. Até que teve uma luz.

“O iorubá, cultura de onde eu vim, era o oposto do que eu ouvia ali. Não há palavra pra diferenciar filho e filha nessa língua, não tem palavra pra irmão ou irmã”, disse.

A partir daí, elaborou sua crítica ao feminismo branco. “A linguagem sempre foi central no meu trabalho porque, ao falar sobre como minha cultura não concordava com nada que estava se falava no Ocidente, ninguém me escutava. Então eu precisava usar a língua como prova de que não era eu que estava dizendo.”

Ela defendeu como é essencial “falar a partir de nós mesmas”, um muro que derrubou com determinação em sua obra como socióloga —ela recordou, inclusive, que não se aceitavam os estudos da África nas universidades como sociologia, só antropologia, como se fosse o estudo do primitivismo.

Mas era essencial para ela afirmar as relações sociais que existiram ao longo de 300 mil anos de história africana, descartadas pela literatura especializada ocidental. “Em algumas sociedades havia casamentos entre mulheres sem qualqurer conotação sexual, mas era uma instituição importante. Em outras, para um rei ter poder, ele precisava de uma matriarca.”

Wekker, de família do Suriname e tornada a segunda professora negra a dar aulas numa universidade na Holanda, também reforçou como é fundamental partir do trabalho da linguagem para estudar as mulheres.

Ela se lembrou de um estudo feito entre diversas mulheres da classe trabalhadora afro-surinamesa, cujas idades iam de 23 a 84 anos. “Notei que as mulheres tinham um leque amplíssimo para falar sobre si mesmas, nelas a palavra ‘eu’ é maleável. Muda muito conforme falam.”

A mesa que fechou o dia também abordou a criação do que pode ser a identidade feminina negra, mas pela via de duas grandes ficcionistas, como apontou a mediadora Eliana Alves Cruz.

A francesa Marie NDiaye, que venceu o Goncourt em 2009 por um livro ainda inédito no Brasil, traduzível como “Três Mulheres Poderosas”, dialogou de perspectiva muito distinta da brasileira Luciany Aparecida, que acaba de vencer o Prêmio São Paulo de Literatura por seu romance “Mata Doce”.

Filha de pai senegalês e mãe francesa, NDiaye apontou que não tinha muitos modelos de escritoras como ela na cena literária do país. “Mas eu não me via como uma mulher negra escritora, e sim como uma jovem que escrevia, sem distinção de cor de pele.”

A autora de “A Vingança É Minha” lembrou que entre suas leituras formativas estavam os clássicos de Marcel Proust, “um homem judeu homossexual que escrevia recluso no começo do século”. “Mas a ausência de semelhança entre nós foi completamente abolida pela magia da literatura.”

Já Luciany Aparecida afirmou fazer questão de se filiar a uma tradição de mulheres negras romancistas que, segundo ela, prolifera cada vez mais e produz um novo letramento estético na literatura brasileira.

Abrindo sua fala apontando que para ela “é revolucionário ser lida”, argumentou que as mulheres negras que escrevem depois de toda a violência da colonização “reelaboram o contar de si, e isso proporciona um refinamento da narrativa”.

“A intelectualidade hegemônica tem o costume de dizer que eu não tenho intelectualidade, e a minha literatura faz a escolha de dialogar com isso, de tocar nessa zona de tensão.”

A Flup continua até domingo com uma programação gratuita de mesas, shows e apresentações no Circo Voador, no centro do Rio de Janeiro.

WALTER PORTO / Folhapress

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