Agressão a ator de peça sobre Camões no Dia de Portugal gera debate político

LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – or volta das 19h (15h de Brasília) desta terça-feira (10) o ator português Adérito Lopes chegou ao teatro A Barraca, em Lisboa, para interpretar o poeta Luís de Camões. Seria a última apresentação da peça “Amor É Fogo Que Arde Sem Se Ver”, sucesso de público e crítica desde o ano passado, simbolicamente num feriado nacional. Em 10 de junho, data da morte de Camões, celebra-se também o Dia de Portugal. Adérito Lopes, no entanto, não pôde interpretá-lo. Agredido a socos por um homem na porta do teatro, sofreu cortes no rosto e foi encaminhado a um hospital público. O espetáculo acabou cancelado.

“Cerca de 30 pessoas estavam à porta do teatro A Barraca insultando os atores que iam chegando”, disse ao jornal O Expresso a atriz e encenadora Maria do Céu Guerra, uma das autoras da peça. Segundo ela, houve distribuição à porta do A Barraca de panfletos com a inscrição “Remigração. Portugal aos portuguezes (sic). Defende o teu sangue”. O slogan é o lema do Reconquista, um grupo extremista português e um dos suspeitos da agressão. Lopes foi encaminhado a um hospital público e liberado na madrugada após suturar os cortes.

Em entrevista à emissora de televisão RTP, Maria do Céu Guerra disse suspeitar também de seguidores de Mário Machado, um dos mais conhecidos skinheads portugueses. Ele já foi preso várias vezes por ofensas raciais e por cumplicidade num caso de assassinato. De acordo com a reportagem do jornal Expresso, imagens captadas por celulares mostraram integrantes de um terceiro grupo extremista, o Blood and Honour. Ainda segundo o Expresso, o Blood and Honour —cujo nome é inspirado em um slogan nazista (“sangue e honra”)— foi mencionado recentemente como grave ameaça na primeira versão do Relatório de Segurança Interna (Rasi) do governo português.

O Dia de Portugal é repleto de simbolismo. Luís de Camões é o poeta nacional do país, autor de “Os Lusíadas”, o grande épico português. A data se tornou feriado no início século 20, marcando o final da monarquia e o início da República. Quando António de Oliveira Salazar instaurou a ditadura do Estado Novo, em 1932, transformou o 10 de junho no “Dia da Raça Portuguesa”, exaltando o colonialismo. Com a redemocratização, em 25 de abril de 1974, o Dia de Portugal voltou a celebrar valores republicanos e multiculturais.

Grupos de extrema direita, no entanto, seguiram celebrando o “Dia da Raça” nos moldes salazaristas —e, ao longo dos anos 1990, com episódios de violência crescente contra estrangeiros. Tais episódios culminaram com o assassinato de um imigrante cabo-verdiano, Alcindo Monteiro, em 10 de junho de 1995. Após um julgamento que mobilizou Portugal, dez extremistas foram condenados por participar diretamente do crime ou contribuir para sua realização, entre eles Mário Machado.

Por causa desse histórico, a agressão ao ator Adérito Lopes mobilizou a classe política de Portugal. O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, prestou solidariedade à equipe do teatro e afirmou: “Vivemos em democracia e não queremos voltar a viver em ditadura.” Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa —cargo que equivale ao de prefeito—, disse: “Na cultura essas coisas não podem acontecer. Não posso ter atores com medo de virem representar ou com algum tipo de receio”. Ele é filiado ao Partido Social Democrata, de centro-direita.

“É inaceitável que uma peça seja cancelada por causa de um grupo neofascista. É o resultado de não haver clareza na rejeição do discurso de ódio”, escreveu numa rede social Rui Tavares, líder da sigla Livre, de centro-esquerda, e colunista da Folha.

O título da peça, “Amor É Fogo Que Arde Sem Se Ver”, faz referência ao verso inicial de um soneto de Luís de Camões. Em um texto sobre o espetáculo, o coautor Hélder Mateus da Costa revela a intenção de apresentar o poeta como um “intelectual moderno e progressista”, dentro de uma reflexão sobre a história de Portugal em que “os descobrimentos são frequentemente sinônimos de roubos e massacres a nível universal” –uma interpretação oposta à da extrema direita portuguesa.

A Polícia de Segurança Pública portuguesa disse que identificou “todos os intervenientes (suspeito, ofendido e testemunhas) e irá comunicar todos os fatos apurados ao Ministério Público”. O suspeito mencionado já foi detido, mas sua identidade não foi revelada. Uma pessoa envolvida na investigação disse à emissora de televisão SIC que o suspeito tem 20 anos e faz parte do grupo extremista Portugueses Primeiro –cujo líder, João Martins, é um dos dez condenados pela morte do cabo-verdiano Alcindo Monteiro e foi solto após cumprir pena. A informação ainda não foi confirmada pela polícia.

JOÃO GABRIEL DE LIMA / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS