Ai Weiwei abre mostra em Lisboa seis meses após censura em Londres

LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Um amontoado de pedaços de porcelana retorcidos e coloridos causa impressão logo na entrada da nova retrospectiva de Ai Weiwei em Lisboa. É uma mostra singela, apenas 17 obras, em comparação com as exposições gigantescas que arrastam multidões mundo afora e se tornaram marca registrada do artista chinês. Tem, no entanto, um significado especial. No dia da inauguração, quarta-feira 15, terão se passado exatamente seis meses desde que a galeria britânica Lisson, uma das mais influentes do mundo, suspendeu uma exposição de Ai Weiwei em Londres, iniciando cancelamentos em série de mostras do artista.

A colorida escultura “Vergalhão de Porcelana”, que abre a exposição na galeria São Roque, homenageia 5.000 crianças mortas num terremoto ocorrido em 2008 em Sichuan, província do sudoeste da China. A obra faz referência aos pedaços de vigas encontrados nos escombros. Na ocasião, o governo censurou notícias sobre a catástrofe. Ai Weiwei mobilizou uma rede de informantes na internet e divulgou o número de mortos num blog. Foi o início de uma série de atritos com as autoridades chinesas, que culminariam com sua prisão por 81 dias, em 2011.

A retrospectiva “Paradigm” condensa algumas das principais características da arte de Ai Weiwei, como temas contemporâneos em diálogo com linguagens tradicionais, uso de meios digitais e exaltação à liberdade de expressão. “Vergalhão de Porcelana” tem tudo isso. Alguns desses elementos, ironicamente, também aparecem no episódio que levou ao cancelamento das exposições de Ai Weiwei previstas para os últimos seis meses -e, de certa forma, ao “cancelamento” do próprio artista.

Pouco depois do ataque terrorista de 7 de outubro em Israel, Ai Weiwei escreveu na rede social X, o antigo Twitter: “O sentimento de culpa em relação à perseguição do povo judeu tem sido, por vezes, utilizado para neutralizar o mundo árabe”. E acrescentou: “Financeiramente, culturalmente e em termos de influência mediática, a comunidade judaica tem sido uma presença significativa nos Estados Unidos. O pacote anual de ajuda a Israel, no valor de US$ 3 bilhões, é, há décadas, considerado um dos investimentos mais avultados já feitos pelos EUA. Esta parceria é frequentemente descrita como uma parceria fundada num destino compartilhado.”

Ai Weiwei apagou a postagem, o que não impediu que o texto viralizasse. Em 15 de novembro, a Lisson -galeria que mantêm espaços em Londres, Nova York, Los Angeles, Paris, Xangai e Pequim- justificou sua decisão de cancelar a mostra britânica do artista: “Avaliamos que não era o momento certo para mostrar seus novos trabalhos. Não há espaço para um debate que possa ser caracterizado como antissemita ou islamofóbico numa época em que todos os esforços devem convergir para o fim do trágico sofrimento nos territórios israelense e palestino”. Galerias em Berlim e Nova York seguiram o exemplo da casa britânica.

Passados seis meses, Ai Weiwei diz não se arrepender da postagem. “Os cancelamentos mostram o quanto pessoas poderosas ficam assustadas quando alguém fala a verdade”, afirmou o artista em entrevista à Folha de S.Paulo. “Eu tenho orgulho do que escrevi. A situação se tornou muito mais clara e muito pior que seis meses atrás. Então, se naquela época alguém me entendeu mal, agora concordam inteiramente comigo.”

Ai Weiwei recebeu a reportagem no novo estúdio que está construindo em Montemor-O-Novo, na região portuguesa do Alentejo. Trata-se de um dos três endereços fixos do artista, que também mantém casas em Cambridge, na Inglaterra, e em Berlim. Além da exposição, Ai Weiwei acaba de lançar a tradução portuguesa de “Zodíaco”, um livro de memórias em forma de história em quadrinhos. Na obra, cujos capítulos são organizados em torno dos signos do horóscopo chinês, Ai Weiwei (que é Galo) reflete sobre a perseguição que sofreu na China -onde esteve preso, teve o passaporte confiscado e viu seu ateliê em Xangai ser destruído por forças de repressão.

O ateliê que Ai Weiwei está construindo em Montemor-O-Novo é uma releitura do que foi abaixo em Xangai. Os materiais europeus -madeira trazida da França e pedras do próprio Alentejo- são arranjados de acordo com procedimentos da arquitetura tradicional chinesa. Não há ganchos ou cola, e sim um sofisticado jogo de encaixes. Ai Weiwei, autor do projeto arquitetônico, diz que não pretende usar o novo espaço para trabalhar: “O ateliê já é um trabalho em si”.

Na página 40 de seu livro de memórias, um quadrinho mostra o rosto do presidente chinês, Xi Jinping, no corpo de um dos soldados que vigiavam o artista na prisão. “Não foi ideia minha, mas do desenhista. Eu nunca falo sobre indivíduos, mas sobre o sistema como um todo”, diz Ai Weiwei. “Eu acho que a política chinesa, especialmente a política externa, tem sido sólida. A China está ligada ao terceiro mundo, aos países subdesenvolvidos, e está construindo seu próprio relacionamento com a África e com a América do Sul –o que eu penso que é uma grande política, porque nós não podemos deixar que o pós-colonialismo domine o mundo. O mundo está mudando.”

Ai Weiwei parece mais simpático ao regime que o perseguiu a vida toda, enquanto se torna mais crítico em relação ao Ocidente depois do cancelamento de suas exposições. Chegou a comparar o estado atual da liberdade de expressão no ocidente à China dos tempos da revolução cultural. Perguntado se não seria um exagero, visto que a revolução cultural prendia e matava, respondeu: “Não é exagero. Você pode ter um presidente maluco nos Estados Unidos, mas é um presidente de fato, e a televisão não deve cortar a fala dele nem as mídias sociais podem deletar seus posts”, diz Ai Weiwei. “As pessoas podem ser loucas por tê-lo colocado lá, mas ele é um presidente eleito, certo?”

O artista vive na Europa desde 2015, quando o regime chinês liberou o passaporte que havia sido confiscado depois de sua prisão. Tornou-se igualmente crítico de várias questões europeias, como a atitude em relação a imigrantes e refugiados. “Todos os povos foram refugiados em algum momento da história”, diz Ai Weiwei. “A imigração é um fenômeno natural, como a água fluindo de um lugar mais alto para um lugar mais baixo. Se você está numa guerra, naturalmente vai procurar um lugar seguro. Não há como acabar com a imigração sem antes acabar com a fome e as guerras.”

Na opinião do artista, a Europa exerce esse tipo de atração, além de se beneficiar da imigração. “A Europa é vista como um lugar paradisíaco, onde há uma situação política e econômica estável, oportunidades para educação, e também segurança. Então você não pode impedir os imigrantes de virem para cá. Todas as nações europeias estão perdendo força de trabalho. E alguém precisa trabalhar. Sejamos realistas. Os países têm que encontrar uma política correta que dê treinamento às pessoas. Este seria o jeito certo de lidar com a questão.”

Entre as obras clássicas de Ai Weiwei está um conjunto de seis pratos de porcelana que reproduzem, na linguagem própria das dinastias Yuan e Ming, a jornada dos refugiados contemporâneos. As peças, de 2017, estão na retrospectiva “Paradigm”, que acaba por ser um resumo concentrado da essência do artista.

JOÃO GABRIEL DE LIMA / Folhapress

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